Mais
Uma Noite...
(The Secret Mistress)
Emma Darcy
Sabrina
Nº 1075

Shantelle queria aquele homem... mas para sempre, não
por uma noite!
Levada a
acreditar que Luís estava noivo de outra mulher e convencida de que ele a
considerava apenas uma aventura, uma amante secreta, Shantelle colocou um fim
no romance, dizendo que ele fora para ela apenas uma diversão. Dois anos
depois, Luís continuava solteiro e era o único homem capaz de tirá-la do país
em que se encontravam. Em troca, ele exigia uma noite em sua companhia. Seria
uma noite de amor, de reconciliação ou de vingança?
Digitalização: Ale M.
Revisão: Cris Bailey
Copyright ©
1999 by Emma Darcy Originalmente publicado em 1999 pela Silhouette Books,
divisão da Harlequin Enterprises Limited.
Título original:
The secret mistress
Tradução:
Nancy de Pieri Mielli
EDITORA NOVA
CULTURAL LTDA.
CAPÍTULO I
Luís Angel
Martinez encontrava-se no elevador do hotel a caminho de sua suíte. Estava
satisfeito. A viagem para La Paz fora um sucesso. Acabava de fechar um negócio
que traria ainda mais lucros para as empresas de sua família da qual era
representante. O jantar fora soberbo. Para encerrar seu dia com chave de ouro,
o repentino tumulto que se estabelecera na cidade fornecera a desculpa perfeita
para que faltasse a sua própria festa de noivado.
Realmente,
aquele fora seu dia de sorte. Mesmo que fosse considerada a mulher mais rica e
poderosa da Argentina, sua mãe não conseguira evitar que uma crise política
fechasse as fronteiras de La Paz, impedindo que o filho a deixasse.
Um sorriso
se estampou no rosto moreno.
Havia duas
mulheres além de Luís Angel Martinez no elevador. Eram jovens e elegantes. O
sotaque e o estilo de roupas denunciavam a origem americana. E os olhares que
lhe dirigiam eram sugestivos. Ao perceber que estava sendo encarado como um
possível flerte, Luís sentiu o sorriso desaparecer de seus lábios.
Desprezava
as mulheres que não sabiam olhar para um homem sem manifestar interesse sexual.
Em especial turistas estrangeiras. Odiava ser considerado um provável amante
latino.
A culpa, em
parte, era de sua aparência física: pele morena, olhos castanhos e cabelos
pretos. A herança espanhola era a grande responsável por esses traços e também pela altura
avantajada. O corpo de compleição atlética tornava-se uma atração a mais.
O elevador parou e as mulheres se
prepararam para sair.
Luís ficou olhando enquanto elas se
afastavam. Eram loiras. Seus cabelos não eram tão claros e brilhantes como os
de Shantelle, mas suas mentes talvez encerrassem os mesmos pensamentos com
relação à escolha de um nativo que lhes proporcionasse uma nova e excitante
experiência carnal.
Comigo não, señoritas, Luís pensou com sarcasmo e tornou a sorrir ao ver a
porta do elevador fechar e continuar o trajeto rumo a um andar mais alto.
Ao menos em um ponto sua mãe estava
certa. Se tivesse de se casar, seria melhor escolher alguém de sua própria
raça, cultura e camada social. Não era uma garantia de felicidade, mas
certamente evitaria algumas surpresas.
Elvira
Rosa Martinez, contudo, não tivera como prever aquela pequena e inesperada
viagem à Bolívia. Ou não teria planejado uma festa onde pretendia anunciar o
noivado de seu filho com a filha do segundo maior empresário da Argentina.
Circunstâncias inevitáveis! Uma
desculpa absolutamente perfeita!
Ao entrar em seu quarto e fechar a
porta, Luís sentia-se bem-humorado como não acontecia havia tempos. Ninguém
poderia duvidar da impraticabilidade de sua viagem. Sua permanência em La Paz
era algo que não dependia de sua escolha. Seria impossível tentar sair da
cidade. Após a passeata realizada pelas ruas centrais no dia anterior por grupos
de fazendeiros e de homens do campo, a Bolívia estava fervilhando. Uma nova
troca de governo parecia iminente. O aeroporto estava fechado. O toque de
recolher havia sido estabelecido. Os militares haviam tomado a cidade.
Hospedado com conforto e segurança
em um dos melhores hotéis da cidade, Luís não se queixava. O estado conturbado
em que se encontrava a Bolívia não o perturbava. O próprio povo já deveria
estar habituado às drásticas mudanças de governo. A história já havia
registrado cinco mudanças em um único dia. O tempo colocava tudo de volta ao
normal. A situação política se normalizava e a vida prosseguia.
Luís dirigiu-se ao pequeno bar
instalado na sala da suíte e serviu-se de um drinque. Poderia ser champanhe.
Havia, afinal, muito o que comemorar.
A idéia de um brinde o fez pensar
que o cancelamento da festa de noivado acarretaria a organização de uma outra
festa. Não se importava. Mas faria questão de ser ele a planejá-la da vez
seguinte. Principalmente com respeito à data.
A quem estava tentando enganar?
Seria apenas um caso de adiar o inevitável. Estava com trinta e seis anos de
idade. Não era mais um garoto. Precisava pensar em casamento e em uma família.
Por outro lado, também estava na hora de sua mãe entender que ele havia
crescido e que ela não deveria se intrometer tanto em sua vida.
A imagem de Elvira Rosa Martinez se
formou ante seus olhos. Ela deveria estar furiosa por se ver obrigada a adiar o
anúncio da maior de suas ambições: unir a fortuna dos Martinez à dos Gallardo.
Cláudia Gallardo fora a escolhida
por ela. A idéia surgira logo após a morte de Eduardo, seu primogênito. Como
Luís o substituiria na direção das empresas, era importante que se casasse.
As qualidades de Cláudia eram
numerosas, segundo sua mãe. Ela o agraciaria com sua beleza. Além disso,
Cláudia reunia as virtudes tradicionais de uma jovem esposa. Por sua pouca
idade, ainda não tinha traquejo social, mas isso se resolveria no momento
oportuno.
Luís sentiu que a imagem de sua mãe
estava se transformando no rosto de uma outra mulher. Primeiro, ele viu um par
de olhos verdes e feiticeiros. Depois o rosto inteiro de Shantelle, a única
mulher por quem se apaixonara e a única que o desprezara.
Despejou algumas gotas de limão e
três cubos de gelo em um copo e acrescentou uma dose de aguardente. Tomou um
gole e estalou a língua. Não queria pensar em Shantelle Wright. Ela não fazia
mais parte de sua vida. Por causa dela, ele havia perdido a capacidade de amar
e sua mãe se aproveitara de seu desânimo para lhe impor uma noiva de sua
escolha.
Agora não se importava mais.
As dúvidas o haviam assaltado
algumas vezes. E se Cláudia não conseguisse satisfazê-lo depois das
experiências incríveis que tivera com Shantelle? Mas, se ela também havia
matado sua paixão, de que adiantaria ter uma companheira de cama disposta ao
sexo? Ou alguém que não se interessava pelo prazer?
Sua mãe estava certa. Cláudia
Gallardo não lhe traria surpresas. Era uma jovem de seu nível social e o queria
como marido. Suas fortunas seriam incalculáveis no futuro. E eles teriam
filhos. Quando tivessem uma família para cuidar, ficariam unidos pelo mesmo
propósito. Talvez até viessem a se amar.
Assim mesmo, era diferente se
resignar à vida traçada pelo destino a ser pressionado por alguém a seguir por
um caminho.
Não era mais o adolescente rebelde
de anos passados. Ele havia crescido e assumido as responsabilidades que teriam
cabido a Eduardo, seu irmão mais velho, se ele ainda vivesse. Isso não
significava, porém, que sua mãe se achasse no direito de comandar seus passos.
A verdade era que Luís estava
adorando a proibição imposta pelas autoridades bolivianas à saída da população
e dos estrangeiros do país.
Cláudia certamente estava a sua
espera, submissa. Ela era submissa em todos os aspectos. Às vezes, Luís
cogitava se aquela atitude não era falsa. Poderia ser uma máscara. Uma tática
para que ele se sentisse o dono do poder, o rei.
Mas e daí? Qual seria o mal se a
esposa respeitasse suas vontades? Se vivesse para agradá-lo?
A bebida estava gelada em suas mãos.
Tomou outro gole. Doce e azeda. Como a vida, Luís pensou.
O telefone tocou naquele instante e
ele se dispôs a atendê-lo, embora a contragosto. Tinha quase certeza de que ouviria
a voz de sua mãe do outro lado da linha. Não seria de admirar se ela já tivesse
encontrado meios de retirá-lo de La Paz.
— Alô?
— Luís — disse uma voz de homem —, é
Alan Wright quem está falando. Por favor, não desligue. Demorei horas para
localizá-lo e estou precisando de sua ajuda.
A súplica sufocou o que teria sido
uma reação automática, ou seja, bater o telefone. Ele não queria ter nenhum
contato com qualquer pessoa que estivesse ligada à mulher que o tratara sem a
menor consideração. Mas a curiosidade, ou, talvez, o espírito humanitário, foi
maior do que o orgulho ferido.
— Que tipo de ajuda? — perguntou,
zangado consigo mesmo por sua fraqueza.
— Estou detido em La Paz com um
grupo de turistas. Deveríamos ter retornado ontem a Buenos Aires. Ninguém sabe
informar quando o aeroporto será reaberto. As pessoas estão assustadas. Algumas
já entraram em pânico. Outras estão sofrendo os problemas causados pela
altitude. Preciso de um ônibus para retirá-las daqui. Tenho condições de
dirigir um. Mas preciso de você para obtê-lo.
Um ônibus.
As lembranças do passado voltaram
com força. Quando conhecera Alan, ele dirigia um ônibus velho que atravessava
uma parte da floresta amazônica. A Argentina, naquela época, estava vivendo
uma fase conturbada, e ele fora enviado ao Amazonas para cuidar das minas de
sua empresa.
Alan permaneceu na função, que
incluía a manutenção do veículo, por seis meses. Após essa experiência, ele
resolveu abrir uma agência de turismo em sua cidade natal, Sídnei.
Australiano de nascimento, mas
sul-americano de coração, ele se especializou em viagens à América do Sul, em
especial a Argentina.
Os primeiros pacotes, oferecidos por
sua agência, se restringiram a viagens com hospedagem em acampamentos.
Pouco a pouco, Alan se embrenhou em
excursões mais caras e mais distantes.
Luís o admirava por sua tenacidade e
iniciativa. Alan fora um bom amigo. Seu humor era invejável. A amizade durara
nove anos. Teria durado para sempre se Alan não lhe tivesse apresentado a irmã.
— Shantelle está com você?
A pergunta soou ríspida. Alan não
respondeu.
— Ela está com você? — Luís
insistiu.
— Droga, Luís! Eu pagarei pelo
ônibus. Você não pode apenas conseguir um para mim? — Alan protestou, irritado.
Ela estava com ele.
A explosão que se desencadeou no
interior de Luís não era conseqüência apenas de seu orgulho. Todas as células
de seu corpo pareciam ter sido atingidas por uma descarga elétrica. O sangue se
carregara de adrenalina. Por mais que desejasse negar, ainda não havia
conseguido esquecer a mulher que o tratara como um simples objeto sexual.
— Onde vocês estão? — Luís quis
saber.
— No Europa Hotel. — A informação
soou carregada de esperança. — Ou seja, é só você virar a esquina.
— Muito conveniente — Luís ironizou.
— Seu grupo consiste de quantas pessoas?
— Trinta e duas comigo.
— Acho que não será difícil
conseguir um ônibus adequado.
— Genial!
— Ele poderá estar em seu hotel pela
manhã.
— Eu sabia que você não me deixaria
em apuros — Alan murmurou, obviamente aliviado.
— Eu resolverei todos seus problemas
— Luís prometeu —, mas com uma condição.
Alan hesitou.
— Qual condição?
Luís não estava preocupado com os
sentimentos de Alan. A amizade entre eles havia acabado da mesma forma que
terminara seu relacionamento com Shantelle. Luís não estava disposto a
facilitar. Não queria mais ser usado. Como proprietário de uma pequena agência
de turismo, afinal, Alan poderia estar interessado apenas em conseguir favores
de Luís Angel Martinez, o poderoso empresário.
Em sua posição, ele podia abrir
portas para Alan, mas também fechá-las.
— Quero que Shantelle me procure em
minha suíte, no Plaza, para negociar o acordo — Luís declarou. — O quanto
antes, para nossa mútua conveniência.
— Você não está falando sério! —
Alan exclamou. — A cidade está em polvorosa. Há tanques e soldados por toda
parte. Uma mulher sozinha não pode andar pelas ruas e ignorar o toque de
recolher. É perigoso demais.
Tão perigoso quanto tentar tirar um
grupo de turistas de ônibus do país, Luís pensou. Os revoltosos estavam
bloqueando todas as estradas. Alan deveria estar arquitetando um plano para
retirar aquelas pessoas em segurança. Talvez conhecesse elementos em condições
de liberá-los, ou dispostos a aceitar gordas propinas.
Ele, porém, não estava aberto à
negociações. Queria Shantelle. Apenas Shantelle.
— Você poderia acompanhá-la — Luís
sugeriu. — Nossos hotéis são praticamente vizinhos. A distância é curta. E esta
rua, que eu saiba, não faz parte da praça de guerra. Não há soldados em postos
de vigia, nem tanques.
— Não posso me afastar do grupo —
Alan explicou. — Nem Shantelle. As mulheres precisam dela...
— O Plaza conta com uma entrada
lateral à rua 16 de Julho — Luís prosseguiu como se não tivesse ouvido as
últimas palavras de Alan. — Haverá alguém a postos para abrir a porta para
Shantelle. Espero-a em trinta minutos.
Luís desligou com um gesto firme.
Havia um sorriso em seus lábios enquanto ouvia o tilintar dos cubos de gelo
dentro do copo que girava com uma das mãos.
Quando uma responsabilidade era
delegada, muitas vezes significava a tomada de um caminho que, de outra
maneira, não teria sido o escolhido.
Era o que acontecia com ele. Por ser
um Martinez, um dia acabaria se casando com Cláudia Gallardo. E por ser irmã de
Alan Wright, Shantelle acabaria passando aquela noite em sua cama!
CAPÍTULO II
Shantelle
notou que o irmão estava contrariado ao desligar o telefone. Ou melhor, ele
parecia furioso ao bater o telefone.
— O que disse Luís Angel? —
Shantelle indagou com a respiração suspensa. Pela conversa, conseguira
adivinhar que Luís aceitara a incumbência de lhes fornecer um ônibus. Algo que
para alguém em sua posição não deveria ser difícil. Os Martinez tinham negócios
importantes em vários países, inclusive na Bolívia. Seus interesses se
espalhavam por diversas áreas: agricultura, mineração, petróleo, gás, cimento e
transporte, entre outras.
— Deixe para lá — o irmão respondeu
ao mesmo tempo que balançava a cabeça. — Tentarei outra saída.
Não havia
alternativa. Shantelle olhou para os papéis espalhados sobre a mesa. Alan e ela
estudaram todas as possibilidades e chegaram à conclusão de que nenhuma era
viável.
Ele se
levantou e se pôs a andar de um lado para o outro. Estavam ocupando uma suíte
espaçosa do Europa, um hotel cinco estrelas recém-inaugurado que concordara em
ceder algumas acomodações por um preço promocional a essa excursão.
Após a
proibição de partirem, contudo, a luxuosa suíte estava parecendo uma prisão. E
acontecia o mesmo com o grupo. Ninguém conseguia se divertir, ninguém sentia
prazer com nada. A ansiedade e o medo
haviam substituído os risos. Tudo o que queriam era voltar para suas casas.
Alan tinha como lema evitar ser
portador de más notícias aos clientes. Era um profissional experiente e costumava
enfrentar com frieza os obstáculos que porventura surgiam. Suas habilidades e
raciocínio rápido o estavam tornando um bem-sucedido operador na área do
turismo.
Dessa vez, porém, ele encontrou
todos os caminhos bloqueados. E não era homem de cruzar os braços e se conformar
com o infortúnio.
Como Luís Angel Martinez, Shantelle
pensou.
Seu irmão e Luís eram muito
parecidos. A amizade que os unia era forte. Era do tipo que não acabava por
causa de empecilhos como tempo, distância e padrões sociais. Não se encontravam
com freqüência, ao contrário. Mas os períodos de separação não faziam
diferença, por mais longos que fossem.
Uma amizade de nove anos...
Uma onda de culpa engolfou-a. Por
causa dela, por causa de sua tolice, eles se afastaram. O irmão estava certo
quando a preveniu de que sua ligação com Luís não daria certo. Mas ela se
recusara a ouvi-lo, recusara-se a encarar a realidade. Até que Elvira Rosa
Martinez a obrigara a abrir os olhos e a escutar. Naquele instante, seu orgulho
ficou tão ferido que não teve condições de perceber que sua brusca saída da
vida de Luís poderia prejudicar sua amizade com o irmão.
Alan jamais se queixou ou acusou-a
das conseqüências de sua decisão. Mas ela soube da verdade por meio de Vicky, a
esposa de Alan. A cunhada estava conversando com um dos funcionários da agência
e lhe passou a informação de que eles haviam tido o ingresso proibido nos
territórios dos Martinez.
A excursão de um dia de Buenos Aires
ao rancho, que era uma das mais lucrativas, foi a primeira a ser cortada.
Patrício, o irmão caçula de Luís,
também não quis mais continuar se relacionando com eles.
Quando encontrou uma oportunidade
para falar a sós com a cunhada, Shantelle se apressou a pedir detalhes sobre o
assunto. Não esperava que a explicação fosse arrasá-la.
— O que esperava, Shantelle, após
fazer o que fez com Luís? Que ele mantivesse a sociedade? Alan é seu irmão.
Luís certamente não quer ter mais nada a ver com ninguém desta família.
Shantelle mordeu o lábio. Alan era
dez anos mais velho do que ela, mas isso não diminuía a semelhança entre eles.
Ambos eram loiros e tinham a mesma estrutura óssea, os mesmos traços
fisionômicos. O nariz e o queixo eram idênticos. Os lábios de Alan eram um
pouco mais finos, porém, e os olhos não eram tão verdes. De acordo com a luminosidade,
tornavam-se cor de avelã.
Após o que acontecera, Luís
praticamente encerrara sua amizade com Alan. Vê-lo significaria ser lembrado a
cada instante de sua irmã.
Na época, Shantelle não se importara
em ferir o orgulho de Luís. Não imaginara que sua atitude se voltaria contra
ela mais tarde. E estava acontecendo, pelo que dizia sua intuição.
— Você estava falando com Luís a meu
respeito — Shantelle insistiu.
Alan concordou em parte.
— Ele perguntou sobre você.
— Foi mais do que isso — Shantelle
murmurou. A ligação fora interrompida abruptamente, logo depois de Alan dizer
que seria perigoso para uma mulher desobedecer ao toque de silêncio. —
Conte-me, Alan.
— Esqueça! — o irmão ordenou.
— Quero saber. Tenho o direito de
saber. Sou tão responsável por esse grupo de excursionistas quanto você.
Alan interrompeu os passos e encarou
a irmã com raiva e frustração.
— Não permitirei que minha única
irmã se sacrifique por ninguém!
Shantelle
entendeu. Luís havia transformado o que seria um favor de negócios em algo
pessoal. Muito pessoal. Por culpa dela, mais uma vez.
Seus nervos estavam em frangalhos.
Ela respirou fundo para tentar se acalmar. Aquilo estava passando do limite.
Não era justo. Alan não podia ser envolvido em uma questão de orgulho. Muito
menos o grupo que confiara neles e que dependia deles para sair daquela
situação.
— Não sou uma criança indefesa,
Alan. Tenho vinte e seis anos e sou capaz de cuidar de mim mesma — Shantelle
declarou.
— Oh, sim. Eu vi como foi capaz de
cuidar de si mesma, dois anos atrás, quando me persuadiu a deixá-la se envolver
com Luís.
— Isso já passou. Posso lidar com
ele agora — Shantelle se defendeu.
— Se tivesse passado, não teria se
recusado a fazer esta viagem à América do Sul. No início, você não queria, lembra-se?
Só está aqui porque Vicky ficou doente no dia anterior à partida.
As faces de Shantelle ficaram
coradas.
— Trabalhamos juntos, não
trabalhamos? Estou aqui para ajudá-lo. E se for preciso ir até Luís para
resolver o problema, eu irei.
— Não, você não irá!
— Você já tentou tudo, Alan —
Shantelle retrucou. — Luís Martinez era sua última cartada. Há dois anos, ele
já teria mandado o ônibus para a porta deste hotel. Fui eu quem acabou com a
amizade de vocês. Sou eu quem precisa encontrar um meio para tirarmos essas
pessoas do país.
Alan ainda tentou dissuadi-la da
idéia. Mas Shantelle manteve-se firme.
Nada a deteria. Nem a contrariedade
de Alan, nem o toque de recolher, nem o perigo, que, aliás, não a preocupava.
A distância entre os dois hotéis era pequena.
Sua vida tornara-se um eterno pesar
desde sua separação de Luís. A saudade a corroera dia após dia. Se Luís queria
vê-la, ela o veria. Talvez o resultado fosse bom. Ao menos resolveria o
problema do ônibus. Devia isso a Alan.
CAPÍTULO III
Na segurança
de sua suíte no hotel, ao lado do irmão, fora fácil decidir, mas à medida que
se aproximava do local do encontro, Shantelle sentia a coragem lhe faltar.
Não havia
esquecido Luís. Duvidava que esse dia fosse chegar.
Fazia alguns
minutos que descera do elevador. O coração parecia querer saltar do peito. O
estômago estava dando reviravoltas. Embora caminhasse devagar, a respiração estava
acelerada como se tivesse corrido.
Parou por
fim diante da porta de Luís, tomou fôlego, e bateu.
Precisava
esquecer o passado, precisava controlar sua vulnerabilidade e pensar que aquele
encontro fora exigido não pelo homem, mas por seu ego ferido. Luís queria ter a
satisfação de dizer que a perdedora acabara sendo ela, não ele.
Shantelle
obrigou-se a aceitar o que viesse pela frente. Não podia se esquecer de que
estava ali para cumprir uma missão. Precisava conseguir um ônibus, custasse o
que custasse.
Seria uma
visita de negócios, pensou. Estava até vestida para isso. Usava uma calça
jeans tipo bag, com bolsos, tênis e uma camiseta vermelha com o logotipo da
empresa Amigos Tours.
A porta foi
aberta. E lá estava Luís, em carne e osso. Os cabelos pretos e ondulados
estavam penteados para trás, como de costume, em
um estilo que realçava seu rosto atraente. Uma aura de vitalidade o envolvia.
Os olhos escuros e profundos chegavam a ser magnéticos.
Shantelle
não foi capaz de se mover, nem de falar. Sua determinação em não perder o
controle foi esquecida. Um arrepio lhe percorreu o corpo. A pulsação acelerou.
Ainda queria aquele homem.
— Seja bem-vinda desse lado do
mundo.
A voz de Luís a trouxe de volta ao
presente e ao motivo que a levara a sua presença. Não era mais a voz que ela
tanto amara. Não havia mais ternura, nem calor, nem intimidade em seu tom. O
sorriso desmentia as palavras. A boca de lábios carnudos que muitas vezes a
beijara com paixão, agora apresentava traços de ironia. Os olhos escuros que
antes brilhavam com a intensidade de sentimentos, agora pareciam de aço.
Se algum dia ela se deixara embalar
pela esperança de que o amor deles pudesse ser revivido, essa esperança se
perdeu. A julgar pela atitude de Luís, não havia esperança nem sequer de um
entendimento entre eles.
Ele se afastou para que ela entrasse
e fez um sinal lhe oferecendo seus domínios.
Perdida entre o passado e o
presente, Shantelle viu em um relance um pedaço da floresta amazônica dentro da
suíte.
— Está com medo de mim? — Luís
zombou. Aquela frase a fez reagir.
— Não. Por quê? Deveria estar?
— Dizem que os amantes latinos são
volúveis — ele insistiu na zombaria.
— Já passou muita água sob essa
ponte, Luís — Shantelle respondeu ao mesmo tempo que atravessava a sala com
passos decididos, embora continuasse tremendo por dentro.
Ela se deteve junto à janela. A
vista de La Paz à noite era esplêndida. Pena que não conseguisse vê-la. Estava
distraída demais com seus pensamentos e com seu propósito de esquecer o
romance que um dia vivera com Luís.
— Continua tão dinâmico como antes —
Shantelle declarou de repente em uma tentativa de promover a paz. — Eu diria
que a vida tem sido boa com você.
— Poderia ser melhor — Luís
respondeu e sorriu, malicioso, quando ela se afastou ao perceber que ele
estava tentando se aproximar.
— Você já deve estar casado —
Shantelle murmurou, não por curiosidade ou ciúme, mas para erguer uma barreira
entre eles.
A camisa branca estava aberta no
pescoço de forma que Shantelle pôde ver a pele morena e os tufos de pêlos
pretos que cobriam os músculos do tórax. As mangas estavam enroladas até os
cotovelos. Sem perceber, Shantelle fechou os olhos. Não queria imaginar aquelas
mãos acariciando outra mulher.
— Não. A bem da verdade, não sou
casado.
As palavras frias e duras a
atingiram como se fossem pregos. Teria cometido um erro?
Incapaz de respirar, Shantelle
voltou para a janela e permaneceu de costas para Luís. Sentia que as faces
estavam quentes. Não queria que Luís a visse naquele estado.
Ele devia estar mentindo! Estava
prometido a outra mulher, uma rica herdeira, muito antes de se conhecerem.
Luís a enganara. Talvez não fisicamente, mas por omissão. Deixara que ela se
iludisse, acreditando que era a única mulher na vida dele. Mas a concorrência
era pesada. Consistia em duas mulheres, não apenas uma.
Elvira Rosa
Martinez não podia ser ignorada.
Nem Cláudia Gallardo, a jovem linda,
fina e doce que estava destinada a ser sua esposa.
Como poderia competir com suas
adversárias poderosas? Aos olhos de Luís, era apenas uma estrangeira com quem
ele poderia relaxar e se divertir nas horas vagas.
Não o culpava. Não tinha o direito
de acusá-lo, falou consigo própria pela centésima vez. Luís jamais lhe fez
promessas.
— Você também ainda deve estar
solteira — Luís continuou. — Afinal, está viajando com seu irmão.
Ela estava de costas, mas pressentiu
a nova tentativa de Luís de aproximação e se apressou a detê-lo.
— Estou aqui a negócios.
Luís ignorou-a.
— Deixou algum amante a sua espera?
— Não tenho ninguém no momento —
Shantelle respondeu sem se voltar.
— Então é por isso que resolveu
acompanhar seu irmão?
A vontade de saltar sobre Luís e
fazê-lo parar com a provocação quase foi maior do que ela. Para se controlar,
Shantelle cerrou os dentes, cruzou os braços e se obrigou a observar as luzes
da cidade.
— Parece um lugar de contos de fada
— murmurou. Não era exagero. Estava na capital mais alta do mundo.
A impressão que dava era de La Paz
ter sido construída dentro de uma cratera da lua.
De seu local de observação, a área
central baixa da cidade, as luzes da cidade se erguiam em uma grande curva
circular e subiam tanto que pareciam pender do céu. Parecia incrível que
houvesse pessoas habitando aquelas paragens.
— Acho que só um mágico poderá
tirá-la desse transe — Luís brincou.
Shantelle virou-se abruptamente.
— Precisamos de um ônibus.
— O toque de recolher só termina às
seis da manhã.
Shantelle prendeu a respiração. O
que Luís estava insinuando? Que eles teriam a noite inteira para negociar?
— Não gosto quando você prende os
cabelos — Luís disse em seguida, o que a deixou ainda mais confusa.
Um estremecimento a percorreu da
cabeça aos pés ao adivinhar a intenção de Luís. Ele a tocou na nuca e
desamarrou, devagar, a fita.
Seria possível que Luís ainda
gostasse de seus cabelos? Que ele ainda a quisesse?
Não. Ela não podia se deixar
enganar. Luís estava provocando-a de uma forma deliberadamente cruel. A vontade
de erguer os olhos e fitá-lo era imensa. Mas o receio ainda maior. Seu orgulho
a impedia de ceder. Era essencial que se acalmasse.
Os cabelos já estavam soltos sobre
os ombros. A expressão de Luís era de prazer ao lhe tocar os fios. De que jeito
poderia manter a calma?
— O que quer de mim, Luís? —
Shantelle perguntou sem preâmbulos.
— O mesmo de antes.
O bom senso se perdeu sob a força do
desejo. Ela o queria e ele, aparentemente, também queria de volta os momentos
de paixão que haviam compartilhado.
A razão tentou prevalecer,
dizendo-lhe que Luís estava apenas brincando com seus sentimentos, usando seu
poder para subjugá-la.
— A que está se referindo?
Ele separou uma mecha dos cabelos de
Shantelle e enrolou-a em seus dedos.
— A ter você mais uma vez. Quero que
passe esta noite comigo.
Um calor abrasador a inundou.
Mais uma vez. Mais uma noite. Em
troca de um favor a ela, a seu irmão e a um grupo de turistas assustados.
— Não é um preço muito alto, é?
Apenas estará me dando o que me dava dois anos atrás para conseguir o que
queria.
— Eu não consegui o que queria —
Shantelle protestou.
— Não? — Luís repetiu em tom de
deboche. — Não correspondi as suas expectativas? Bem, dessa vez, tentarei não
desapontá-la. Teremos muitas horas para nos divertir. Prometo-lhe sensualidade
e prazer sem limite.
A proposta era cruel e impiedosa.
Shantelle se envergonhava de si mesma. Mal podia esperar. Sabia que não teria
forças para recusar. Aquelas palavras a faziam vibrar de excitação. Nenhum
homem lhe despertara tanto desejo. Nenhum a levara ao êxtase como Luís. Não
sentira nem sequer atração física por alguém depois de conhecer Luís.
Fazia dois anos que não era tocada.
Não merecia ser tratada daquele jeito.
Sexo. Luís queria apenas sexo. Sem
amor. Estava errado. Estava tudo errado.
Shantelle
sentiu o coração bater mais depressa quando Luís a atraiu para mais perto, sem
lhe soltar os cabelos.
Então, com um sorriso nos lábios e
um olhar intenso, ele começou a lhe acariciar os seios.
— Pare com isso! — Shantelle
ordenou, zangada consigo mesma por sua reação instantânea ao toque.
Ele continuou.
— Não gosta mais?
A tentação era grande. Os mamilos já
estavam rígidos, palpitantes. Na verdade, ela não queria que Luís parasse.
Nunca. Mas ele só queria tê-la por uma noite. A menos que...
Um pensamento assaltou-a.
Luís não havia se casado. E ele
ainda a desejava. Queria vingar seu orgulho ferido. E ela também!
— Não sou uma aventureira. Não sou
do tipo que aceita passar uma noite com um homem para na manhã seguinte dizer
adeus.
— Este é um caso especial — Luís
retrucou. Subitamente, ela resolveu ceder. De nada adiantaria fingir que não o
queria. Seria melhor fazer o jogo dele de uma vez.
— Vejamos se eu o entendi bem...
Ela desabotoou o restante da camisa
e pôs-se a acariciá-lo no peito e nos mamilos. Não demorou a ouvir os gemidos
de Luís. Foram como música para seus ouvidos. Significava que ela também ainda
tinha poderes sobre ele.
Fitou-o de maneira deliberadamente
provocante nos lábios.
— Se eu concordar em passar a noite
com você, Alan e eu teremos nosso ônibus para ir embora da cidade? É este o
trato?
— Sim — ele admitiu.
— Então comece a dar os telefonemas,
Luís. Quero ouvir suas instruções para que o ônibus esteja à porta do Europa
Hotel amanhã cedo, logo que o toque de recolher for suspenso. Assim que esse
assunto estiver acertado, avisarei Alan para que não se preocupe mais e então
teremos a noite inteira só para nós.
Shantelle
percebeu a contrariedade no modo que Luís estreitou os olhos. Ele não estava
gostando do novo rumo que ela dera à situação.
— Espero que não tenha lhe passado
pela cabeça a idéia de não cumprir sua palavra, Luís.
Ela ainda não havia terminado a
frase e já estava arrependida. O perigo impregnou o ar.
Ele sorriu de uma maneira odiosa. De
seu corpo emanava uma vibração irresistível. Com um movimento lento, Luís
segurou a mão que ela ainda mantinha sobre o peito musculoso, e a fez deslizar
até a virilha.
— Sinta você mesma se estou ou não
preparado para lhe proporcionar o que espera.
Shantelle não respondeu. Não poderia
mesmo que quisesse. Luís inclinou-se sobre ela e beijou-a na boca. E ela
beijou-o também, ansiosa por prová-lo após tanto tempo, e saber se ainda havia
alguma chance de reacender a chama da paixão, apesar do orgulho e das
diferenças que os separavam.
Abraçou-o e entregou-se por completo
ao beijo ao mesmo tempo que pressionava seu corpo contra o dele.
Perdeu-se tanto em sua saudade que a
volta à realidade chocou-a.
— Deve estar desesperada por sexo,
Shantelle — ele caçoou ao interromper o beijo. — Permita-me cumprir minha
parte no trato antes de nos deitarmos.
Ele se afastou em direção ao
telefone. Parecia exercer total controle sobre si. Ao contrário de Shantelle
que não conseguia parar de tremer.
Amava aquele homem. E odiava-o.
Queria passar a noite com ele. E
queria esquecê-lo.
Como seria? Viveriam uma experiência
intensa e gratificante? Ou teria seu coração ainda mais partido ao alvorecer?
Ela não sabia. Não tinha forças para
ficar e muito menos para se levantar e ir embora.
Luís tirou o fone do gancho,
pressionou algumas teclas, disse seu nome com arrogância. Luís Angel Martinez.
O único homem que a fazia vibrar de paixão. O único homem que ela queria.
Haveria alguma chance de vitória
para Shantelle, se ficasse?
O meio de fuga, ela pensou.
Mas não era isso que importava.
A verdade era que sua decisão de
atender a exigência de Luís prendia-se a sua própria vontade. Porque ainda
restava um fio de esperança em seu coração de que não seria apenas uma noite.
CAPÍTULO IV
Luís
colocou-se de costas para Shantelle e usou propositalmente o quechua, o antigo
idioma inca, para que ela não entendesse o que estava dizendo. Sentia um prazer
perverso em humilhá-la. Tinha certeza de que seu sacrifício em interromper o
beijo também valera a pena. Queria que Shantelle sentisse ao menos uma parte
da frustração que o assaltara durante aqueles dois anos.
Insegurança, é isso o que ela
merece, Luís pensou. Shantelle viera a sua suíte confiante demais em seus
poderes sobre ele. Mas antes que a noite terminasse, ela descobriria quem
estava no comando. Nesse momento, ele a mandaria embora com a mesma brutalidade
que ela o dispensara, dizendo que já havia se fartado da relação e que ele fora
para ela apenas uma aventura.
— O ônibus não será problema — Ramon
Flores, o gerente da empresa que também fazia parte do império Martinez,
garantiu —, mas...
— Mas o quê? — Luís quis saber.
— Seria inútil pedir que um de meus
motoristas o conduzisse até seu hotel. Ele seria detido pela polícia e preso
por desacato. Os militares proibiram agrupamentos. Três pessoas juntas já são
consideradas uma multidão. Sinto muito, Luís, mas é impossível.
Luís franziu o rosto. Não havia
pensado naquele aspecto da questão. Por outro lado, não podia se dar por
vencido diante de Shantelle Wright. Recusava-se a passar por fraco e
ineficiente. Precisava encontrar uma saída.
— Talvez seu amigo australiano possa
atravessar o cerco — Ramon sugeriu. — Ele é um estrangeiro. E se está disposto
a arriscar a segurança de seus clientes, tirando-os de La Paz, também deve
estar disposto a buscar o ônibus pessoalmente. Nós o deixaremos pronto para
partir, com o tanque cheio.
Não era o que Alan lhe pedira, mas o
que importava realmente era conseguir o ônibus.
— Haverá alguém à espera para
entregar o veículo? — Luís indagou.
— O toque de recolher é suspenso às
seis horas. Às seis e trinta haverá um homem nos portões.
— Obrigado, Ramon.
— Insisto que isso é uma tolice,
Luís.
— Meu amigo não mudará de idéia.
— Lembre-se de que seremos nós quem
arcaremos com as conseqüências depois.
— Eu me responsabilizo. Você está
apenas cumprindo ordens. Não se preocupe, Ramon.
— Você é quem sabe.
Luís desligou com um suspiro. Ramon
estava certo. O empréstimo do ônibus lhe traria grandes problemas. O grupo
estava instalado com conforto e segurança no hotel. Suas vidas não seriam
alteradas por causa de uns dias a mais de férias, embora forçadas. Não seria
melhor ser detido no luxo do que ir parar em uma cadeia ou morrer?
Não havia o que pensar. Se ele se
envolvesse naquela história, estaria colocando em risco a reputação dos Martinez.
Seria mais tolo do que Alan. Principalmente porque a razão dessa insensatez era
uma mulher que o usara e que não merecia nem sequer um minuto de sua atenção.
Fora uma loucura de sua parte
deixar-se levar pela tentação de uma vingança. A única saída para ele seria expulsá-la
imediatamente de sua suíte e dar-se por satisfeito com a humilhação a que a
submetera.
Olhou para Shantelle.
Ela estava emoldurada pela escuridão
da noite além da janela. As luzes da cidade brilhavam sobre seus cabelos
emprestando-lhe uma aura de mistério. Os cabelos longos pareciam ainda mais
claros ao luar e os olhos faiscavam como esmeraldas. Os lábios estavam
entreabertos, como ele os deixara, à espera de outro beijo.
Forçou-se a afastar os olhos daquele
rosto encantador e examinou a camiseta. Shantelle não tinha coração. Mas os
seios eram lindos e estavam se movendo sob o tecido conforme ela respirava.
Não conseguia entender como ainda
desejava tanto aquela mulher, se a detestava.
— O ônibus será entregue amanhã de
manhã? — Shantelle perguntou.
O assunto era sério para ela, Luís
pensou. A perspectiva de passar a noite com ele não a divertia. O que era
justo. Ela havia se divertido da última vez. Agora chegara a vez dele.
Poderia se considerar vingado, se a
dispensasse naquele instante. Mas qual seria sua satisfação nisso? Oh, não. Ele
queria sentir-se saciado fisicamente antes de se separarem. Ela não fizera o
mesmo?
— Sim.
Shantelle não conseguiu sustentar
seu olhar. Parecia tensa. Cabisbaixa, não parava de abrir e fechar as mãos à
altura da cintura. Ele as tomou, então, e fez com que Shantelle o tocasse.
Ela respirou fundo. Sem perceber,
ele fez o contrário. Parou de respirar à espera de uma reação.
Quando tornou a falar, Shantelle
estava novamente cabisbaixa.
— Se você é casado, Luís, eu me
recuso a participar desse jogo que você armou.
Luís apertou os lábios. Não, ele não
era casado. Por causa dela.
— Se eu tivesse uma esposa, não
olharia para nenhuma outra mulher.
O modo como ela o encarou o
surpreendeu. Havia fatalidade na expressão, mas nenhum traço de resignação ou
de derrota. Ele se sentiu perturbado com a força que aquele olhar traiu. Não
era o que esperava. Não era o que ele queria.
— A que horas devo informar Alan que
o ônibus estará em nosso hotel? — Shantelle quis saber. — Ele precisa avisar o
grupo para que todos fiquem preparados.
Ele precisava contar a Shantelle que
Alan teria de buscar o ônibus na garagem, mas o orgulho não permitiu. Se não
subjugasse Shantelle aquela noite, continuaria se sentindo humilhado pelo resto
de sua vida. Preferia morrer a dar um novo motivo para que Shantelle Wright
zombasse dele.
Estava decidido. Mesmo que seu passo
pudesse comprometer o nome de sua família, ele iria buscar o ônibus e o
levaria até o hotel. Faria qualquer loucura para que Shantelle fosse dele ao
menos mais uma vez.
— As sete, se os militares não o
detiverem. Isso está acima de meu controle.
— É claro. Vou dar a notícia a Alan.
Luís acompanhou todos os movimentos
de Shantelle enquanto ela falava com o irmão. Ele havia vencido. O gosto da
vitória, entretanto, era mais amargo do que doce. Shantelle seria dele. Mas
não por inteiro.
Expulsou o pensamento. Tudo o que
importava era sua vingança. E ele só ficaria livre do fascínio daquela mulher,
quando conseguisse humilhá-la.
CAPÍTULO V
Shantelle
sentiu-se invadir pelo pânico. Como diria a Alan que passaria a noite com o homem
que roubara seu coração dois anos antes, que a usara a seu bel-prazer, e que
encerrara uma amizade de nove anos por raiva quando ela se negara a continuar
sendo usada?
Alan não
entenderia, por mais que tentasse explicar a ele. Uma noite...
Talvez valesse
a pena. Talvez esse encontro a libertasse, a fizesse esquecer Luís Angel
Martinez. Ou, por um milagre, renovasse sua esperança de amor.
Ele a
desejava. Disso não tinha dúvida. Era nessa paixão que ela estava apostando. E
no fato de Luís não ter se casado. Ao menos naqueles dois anos, a herdeira dos
Gallardo ainda não havia conseguido conquistá-lo ao ponto de tornar-se sua
esposa.
Era difícil
acreditar, mas também restava a hipótese de que Elvira Rosa Martinez não
conhecia tão bem o filho como imaginava.
— O telefone está a sua disposição —
Luís disse com displicência.
Shantelle
obrigou-se a andar e a sorrir.
— Não será uma conversa agradável.
— Acha que foi agradável pedir um
ônibus quando a cidade está um caos? Fiz papel de tolo.
Ele estava
certo. Ambos eram tolos.
Tirou o fone
do gancho. Não olhou para Luís, mas sabia que ele
estava perto, que não permitiria que falasse em particular com Alan. Ao
contrário. Luís parecia disposto a não perder nem sequer uma palavra da
conversa.
Shantelle
virou-se de costas para ele assim que a ligação foi completada. Já bastava
tê-lo como testemunha das explicações que daria a Alan. Não queria que ele
visse o esforço que isso lhe custaria.
— De onde você está falando? — foi a
primeira pergunta de Alan.
— Estou com Luís, em sua suíte. Ele
conseguiu o ônibus para nós.
— O que pediu em troca?
— Está tudo certo. Pode avisar o
pessoal para estar no saguão do hotel às sete horas.
— Você não respondeu minha pergunta
— Alan insistiu.
— Ele conseguiu o ônibus, mas não
pode garantir sua entrega. Infelizmente, os militares poderão detê-lo.
Um longo suspiro foi ouvido do outro
lado da linha. Shantelle visualizou o irmão se levantando e endireitando as
costas.
— Se o assunto está resolvido, vou
buscá-la. Espero-a na mesma porta por onde entrou, em cinco minutos.
As mãos de Luís pousaram em sua
cintura, distraindo-a. Ele estava tão perto que sentia o calor que se
desprendia de seu corpo, embora ele só a estivesse tocando com as mãos. Tentou
engolir, mas o nó em sua garganta não permitiu. O coração disparou quando Luís
começou a desafivelar seu cinto.
— Shantelle?
Ela se forçou a prestar atenção em
Alan.
— Não. Nós ainda temos algo para
resolver aqui — murmurou.
— Estamos apenas começando — Luís
acrescentou ao mesmo tempo que descia o zíper.
Shantelle prendeu a respiração. A
qualquer instante, as mãos de Luís teriam vencido a barreira das roupas e estariam
acariciando sua pele.
— O que está havendo aí? — Alan
perguntou, nervoso. Shantelle esforçou-se para raciocinar. Precisava encontrar
uma resposta. Depressa.
— Vou passar a noite com Luís, Alan
— respondeu com dificuldade ao sentir o jeans e a calcinha deslizarem por suas
pernas.
— O quê? — Alan gritou.
O choque de Alan não foi nada em
comparação com o que Shantelle sentiu ao se ver exposta, vulnerável aos desmandos
de Luís. Sua vontade era largar o telefone e tornar a vestir a roupa.
— Estou indo buscá-la.
— Não! — ela pediu. Virou-se para
Luís e repetiu a palavra. — Não!
Luís ignorou seu protesto. Ergueu-a
e colocou-a sentada sobre a mesa e se pôs a desamarrar os tênis. Shantelle
viu-se perdida. Seus pés estavam apoiados nas coxas musculosas de Luís.
Estremeceu. Em poucos instantes ele também se despiria. O que devia fazer?
Tentar colocar um fim nessa cena?
— Se esse é o preço que ele impôs,
eu...
— Alan — Shantelle interrompeu o
irmão. — Eu fiz o que você pediu. Agora o problema é entre mim e Luís. É algo
pessoal
— Você ficou maluca? Luís se
aproveitará de você como antes.
Faltava apenas tirar a blusa para
ela ficar totalmente nua. Shantelle estava tão excitada que não conseguia mais
pensar, quanto mais falar.
— O problema continuará sendo apenas
meu!
— Ele a quer em troca do ônibus, não
é?
Ela mal conseguia respirar. Fechou
os olhos.
— Faça-me um favor, Alan. Arrume
minha mala para que eu não os atrase amanhã. Voltarei para o hotel assim que o
toque de recolher for suspenso.
Luís colocou-se entre as pernas de
Shantelle. Estava exultante. Ele a teria por toda a noite.
A voz frenética de Alan chegou aos
ouvidos de Luís. Ele tirou o fone da mão de Shantelle.
— Fique fora disto, Alan! O assunto
entre mim e sua irmã é particular, como ela acabou de dizer.
Alan não teve chance de retrucar.
Luís interrompeu a ligação em seguida. E após uma fração de segundo, terminou
de despir Shantelle.
Ela estava atordoada pela rapidez
com que tudo estava acontecendo e pela falta total de atenção que normalmente
acompanhava essa etapa da relação. Olhou para Luís e encolheu-se ao ver que
uma máscara de orgulho encobria suas feições.
Não houve tempo para pensamentos nem
palavras. Luís a segurou pela cintura e a fez descer da mesa. Em seguida a
levou para o quarto, pela mão.
Shantelle não tentou lutar. Estava
sem forças. Estava perplexa ao ser tratada como um objeto.
— É aqui que eu te quero — Luís
disse com os olhos voltados para a cama. — Onde você gosta de se divertir.
Luís jamais conseguiria esquecer o
pouco caso com que Shantelle o tratara. Não suportava a idéia de ter sido
apenas um passatempo para ela.
E para ele? Seria apenas uma
vingança? Ou Shantelle continuaria sendo a dona de sua mente e de seu coração
apesar de tudo?
Prendeu o fôlego quando ela se
acomodou na cama e arrumou os cabelos de forma a esconderem os seios.
— Você era um amante magnífico,
Luís. Também gostava de se divertir, pelo que me lembro. É uma pena que tenha
mudado sua tática de sedução. A brutalidade não pode se comparar às carícias.
Ele sorriu com ironia.
— Você sempre gostou de variar. Vou
lhe mostrar que sou capaz de saciá-la de outras maneiras, uma vez que se cansou
de meu modo de fazer amor.
— Eu nunca me cansei de você. Sempre
que fazíamos amor era muito especial.
Luís franziu o cenho.
— Então resolveu ir embora antes de
se cansar.
— Não, Luís. Eu fui embora antes que
a verdade desabasse sobre mim.
— Que verdade? — Luís quis saber,
sem parar de se despir.
— A vida que você levava em Buenos
Aires.
Ele não pareceu se considerar
culpado. Nem sequer olhou para ela. Estava ocupado demais em tirar os sapatos e
as meias. Só voltou a falar, quando se levantou para descer o zíper da calça.
— Claro. O romance só existiu
enquanto estávamos no Amazonas. Quando eu tive de voltar para meu trabalho em
Buenos Aires, você não aceitou que eu não pudesse me dedicar a você em tempo
integral. Fique tranqüila. Esta noite, você terá toda minha atenção.
A frustração foi mais forte do que
Shantelle. Ela queria ferir Luís do mesmo modo que ele a estava ferindo.
— Por quê? Não conseguiu nenhuma
outra mulher que o satisfizesse?
As palavras o atingiram. Ela o viu
apertar os lábios e estreitar os olhos.
— Considera-se a única para mim?
Luís colocou-se de pé e ficou parado
diante de Shantelle por um longo momento. Sorria de modo abominável. Ela estava
como que paralisada diante daquele corpo maravilhoso e agressivo.
— Sim, você é especial, Shantelle —
ele admitiu. — É por isso que quero ter o seu corpo só para mim, esta noite.
Shantelle sentiu o estômago dar uma
reviravolta. Todas as cartas pareciam estar contra ela. Por alguma razão, porém,
não conseguia abandonar a esperança.
— Você está se arriscando — Shantelle
o desafiou. — Muitas pessoas se viciam em erotismo.
De repente, Shantelle reconheceu uma
expressão no rosto de Luís que a fez pensar no homem que conhecera dois anos
antes. Uma onda de ternura invadiu seu coração.
— A substância tem de estar ao alcance
para causar o vício — Luís respondeu. — Mas eu a terei apenas uma noite. É por
isso que quero aproveitar cada minuto.
A declaração ecoou nos ouvidos de
Shantelle enquanto sua boca era beijada pelos lábios e pela língua de Luís com
a paixão acumulada em dois longos anos.
Um pensamento assaltou-a naquele
instante. Talvez devesse ter ficado e enfrentado a mãe de Luís. Talvez ele
preferisse abrir mão de sua herança a perder seu amor.
Talvez tivesse sido uma tola ao se
deixar levar pelo orgulho e abandoná-lo sem lhe contar sobre as ameaças que
recebera. Ela deveria ter lhe dado a chance de escolher.
Agora, após dois anos, o destino
estava colocando ao alcance de suas mãos uma nova oportunidade...
Shantelle mergulhou os dedos nos
cabelos de Luís e se deixou embriagar pela sensação de posse. Luís lhe
pertencia. Não havia outro homem como ele. E ele ainda a queria. O que sentiam
era mútuo.
Seus braços foram afastados. Luís os
prendeu sobre a cama.
— Esta é minha noite, Shantelle.
Ele se inclinou e beijou-lhe os
lábios, sem permitir que ela correspondesse. Depois beijou-a na base do
pescoço, pressionando os lábios de tal forma que uma onda de calor a invadiu.
Depois, Luís tomou os mamilos e os
sujeitou a variados tipos de carícias, deixando-a trêmula de excitação.
Se era daquele jeito que Luís
pretendia puni-la, estava pronta para o castigo, Shantelle pensou. Por isso,
quando ele soltou um de seus braços, não tentou movê-lo.
Luís era um amante perfeito. As
sensações que lhe provocava eram indescritíveis. Naquele instante, ao acariciá-la
no centro de sua intimidade, ela sentiu-se à beira do êxtase.
Os últimos vestígios de controle a
abandonaram sob o doce castigo. Seus músculos enrijeceram. Estava mais do que
pronta para ele. As primeiras ondas de êxtase estavam começando e Luís ainda
não lhe havia dado a parte de seu corpo que ela mais queria. Faltava a conexão
íntima que os levaria ao êxtase final.
Um gemido escapou de seus lábios.
— Por favor, Luís...
Ele reagiu de maneira inesperada,
colocando-a de bruços e abraçando-a pela cintura de modo a posicioná-la para a
penetração. Trêmula, Shantelle fechou os olhos. Luís nunca havia feito amor com
ela assim. A movimentação era intensa. As sensações se avolumavam em ondas que
ameaçavam inundá-la por inteiro.
Cada vez que Luís se afastava,
segurava-a com força para que não se movesse e sentisse o impacto da nova invasão,
ainda mais profundamente. Era a ênfase à posse. Luís parecia querer estar
presente em todas as células de seu corpo.
Ele repetiu o ato tantas vezes que
Shantelle perdeu a conta. E embora com uma mão a subjugasse a sua vontade, com
a outra ele não parava de acariciar os seios e de manipular os mamilos.
Shantelle não se importou que Luís
quisesse dominá-la. O prazer que ele lhe dava era maior do que tudo. Não era
importante tampouco que ele não estivesse se preocupando em esperá-la para que
alcançassem o clímax juntos. Não, isso não importava. No momento que derramou a
essência de sua força dentro dela, Shantelle sentiu uma imensa alegria. Isso
Luís não poderia lhe negar.
Quando se deitou para descansar,
Luís a levou consigo. Os braços ainda a seguravam, os corpos continuavam
unidos. E ela não mais se considerou um objeto de prazer. Estava ocupada
demais em sentir que eram outra vez um só.
Luís Angel era seu homem. E ele a
queria.
Porém, cada vez que tentava tocá-lo,
Luís se recusava. Queria ter o controle absoluto. Ele decidia como, quando e
onde acariciá-la.
Pouco a pouco, Shantelle abandonou a
esperança de apagarem o passado e de se entenderem novamente.
A relação não estava sendo mútua.
Ele não queria que fosse. Aquilo era apenas uma espécie de orgia sexual, onde
ele saciava seu apetite, sem se importar com os sentimentos envolvidos.
A resposta que ela buscava estava
diante de seus olhos.
Não havia futuro para ela com Luís
Angel Martinez.
Essa certeza deu a Shantelle a força
necessária para se libertar. Usou braços, pernas e cotovelos. Ouviu-o
praguejar, mas não parou. Sem condições de fugir, nua e indefesa, Shantelle
correu para o banheiro e trancou a porta.
Luís estava muito enganado se
pensara que ela havia concordado em passar a noite com ele por uma troca de
favores. Se ela se entregara, a esperança a levara a isso. Mas depois de ter a
certeza de que Luís só queria se aproveitar de seu corpo, não permitiria que
isso voltasse a acontecer.
CAPÍTULO VI
A súbita
mudança de comportamento de Shantelle surpreendeu Luís. Aconteceu sem nenhuma
razão aparente. A doce submissão se transformou em uma rejeição explosiva. Ele
ficou tão aturdido que precisou ouvir o estrondo da batida da porta para
voltar a si e fazer uma rápida retomada de seus movimentos.
Shantelle
não havia se queixado nem protestado. Tinha certeza de que não a machucara. Ao
contrário. Ela havia aceitado e correspondido a todas suas investidas por mais
ousadas que tivessem sido. E ele dera vazão a todo o desejo acumulado durante
dois anos.
Por quê,
então, Shantelle havia resistido quando ele menos esperava e fugido?
Admitia não
ter permitido que Shantelle tecesse sua teia de sedução para atraí-lo. Bastara
uma vez. Não seria nunca mais um joguete nas mãos dela. E deixara isso bem
claro. Não tinha culpa se Shantelle não acreditara que ele ficaria imune a seus
encantos.
Luís fez um
movimento de descaso com os ombros. A diversão havia acabado. Paciência. Se
Shantelle queria passar o resto da noite no banheiro, o problema era dela. E
se pensava que esse comportamento o faria rever sua decisão, ela estava
perdendo seu tempo. Além disso, ele já havia conseguido o que queria, e
aproveitado cada instante. Estava plenamente satisfeito.
Levantou-se e sorriu consigo mesmo.
Shantelle havia implorado. E ele dera o que ela queria. A partir daquela
noite, Shantelle pensaria duas vezes antes de tentar brincar com o orgulho de
Luís Angel Martinez.
O relógio sobre a mesa-de-cabeceira
marcava onze horas e quarenta e sete minutos. Ainda não era meia-noite. E o
acordo era que Shantelle passasse a noite inteira com ele. Que ilusão! Aquela
fora mais uma das mentiras de Shantelle. Ela era especialista em promessas
falsas.
Encaminhou-se para o armário e
apanhou o robe que o hotel oferecia aos hóspedes como cortesia. Vestiu-o e amarrou-o
na cintura. Em seguida foi para a sala para se servir de uma bebida.
Ao passar pelo banheiro, ouviu
barulho de água. Ela estava no banho, tentando eliminá-lo de sua pele. Mas não
conseguiria, se a vontade dele valesse. Não seria justo. Por mais que se
esforçasse, ele não conseguira esquecer o perfume de Shantelle desde que ela o
deixara dois anos antes.
A luz da sala estava acesa. As
roupas de Shantelle estavam no chão e ele não fez menção de pegá-las. Passou
por elas a caminho do bar e deu um sorriso de triunfo. Shantelle, afinal, não
poderia ir a parte alguma sem se vestir. Mais cedo ou mais tarde, ela teria de
sair do banheiro e recolher as roupas. Ele não perderia esse momento por nada.
Luís despejou uma dose de uísque no
copo e acrescentou alguns cubos de gelo. Tomou um gole e sentiu a boca amarga.
Diziam que a vingança era doce, mas não era. Servia apenas para reforçar a
certeza de que aquilo que desejamos está fora de nosso alcance.
Ele foi até a janela e olhou para a
cidade iluminada. La Paz era linda à noite. Parecia um lugar dos contos de
fada, como Shantelle dissera. Exatamente igual a ela, Luís pensou. Uma linda
fachada que escondia perigos.
Pela manhã, ele teria de se expor a
esses perigos. Enfrentaria as ruas e tentaria burlar a guarda para entregar o
ônibus a Alan. Tudo por causa de um acordo absurdo que fizera por desespero, só
para poder ter Shantelle em seus braços mais uma vez.
Uma ilusão. Acontecera tão depressa
que ele não tivera chance de saborear a vitória. Porque não havia o que ganhar.
Ela não tentara enganá-lo. Não havia amor em seu coração. Ela o queria por sexo
apenas. E ele errara em sua suposição de que a expurgaria de seu ser se a
tratasse como fora tratado. Experimentara alguns minutos de prazer. De um
prazer carnal intenso, sim, mas que aumentara ainda mais sua sensação de vazio.
Tomou outro gole. Queria que a manhã
chegasse depressa. Não se importava mais com o perigo que o aguardava nas ruas
de La Paz. Seria bom morrer. Se isso acontecesse, talvez, finalmente, pudesse
encontrar a paz.
CAPÍTULO VII
Shantelle
apagou a luz, girou a maçaneta com extrema delicadeza e abriu a porta com cuidado
para não fazer nenhum barulho. Aguçou os ouvidos. O silêncio era total. Prendeu
a respiração e deu um passo.
Esperava que
Luís tivesse desistido de esperá-la e adormecido. Ficara mais de uma hora
trancada no banheiro, tentando se acalmar e apagar todos os vestígios que ele
deixara em seu corpo. Lavara até mesmo os cabelos em sua necessidade compulsiva
de expulsá-lo de sua mente.
Segurou a
borda da toalha, que amarrara ao redor do corpo, com ambas as mãos. Armou-se de
coragem e seguiu em direção à sala, onde Luís a despira. As roupas ainda deviam
estar lá, amontoadas no chão.
Ele havia
deixado as luzes acesas. Viu as roupas de longe. Calcinha, sutiã, jeans e
camiseta. Vestiu as peças o mais depressa que pôde. Não podia perder nem sequer
um segundo. Sentou-se ali mesmo, no chão, para calçar as meias e os tênis.
Então, sentindo-se mais segura, levantou-se e estava pensando em ir até a
janela onde passaria o resto da noite, quando um impulso irresistível de olhar
para trás a dominou.
Luís estava
parado junto à porta do quarto.
O caos
voltou a reinar em sua cabeça. A agitação assumiu o controle. Todos os músculos
e nervos de seu corpo enrijeceram. Seus olhos ficaram presos aos do homem que
acabara de destruir tudo de bonito que houvera entre eles.
Ele havia assistido toda a cena.
Obviamente não ficara satisfeito em humilhá-la apenas na cama.
Era um alívio, porém, vê-lo de robe
e não mais despido. Não que isso diminuísse sua apreensão. Embora Luís não
parecesse tão arrogante quanto no início da noite, ainda havia um brilho
irônico em seus olhos.
— Parece que você desistiu de passar
a noite comigo.
— Você já teve o que queria —
Shantelle respondeu.
Ele deu de ombros.
— Sim, e não foi bom como eu
esperava.
As palavras soaram carregadas de
desprezo. Shantelle sentiu o sangue lhe subir às faces.
— Nem para mim.
Luís fez um sinal em direção à
porta.
— Fique à vontade para ir embora.
Não a prenderei mais aqui.
— Oh, é claro que não! Por certo,
espera que eu faça isso para depois dizer que eu rompi nosso acordo e se sentir
desobrigado de sua parte!
— Sua permanência aqui tornou-se
irrelevante — Luís insistiu. — Se está com medo de andar pelas ruas, por que
não liga para seu irmão? Aposto que ele virá correndo ao seu chamado.
— Não! — ela respondeu com
veemência. Como pudera ter amado aquele homem? Estava odiando-o agora com todas
suas forças. — Ficarei aqui até que o toque de recolher seja suspenso, conforme
combinamos. Meu sacrifício não será em vão. Não o dispensarei de sua promessa.
A resposta soou carregada de
orgulho.
— Eu lhe dei minha palavra.
— É o que espero. — Shantelle o
encarou como se quisesse fulminá-lo. — E como sua companhia me dá tanto
desprazer quanto a minha a você, por que não vai para o quarto e me deixa em
paz?
— Como quiser — Luís respondeu com
ar de indiferença. — A escolha é sua. O desconforto é seu.
Luís se afastou. Ela não sabia se
ficava aliviada ou ainda mais zangada. Era óbvio que não se importava com ela.
Em sua opinião, ela não merecia nem sequer um minuto de seu tempo.
Quase foi vencida pela raiva. Queria
procurá-lo e dizer tudo o que estava pensando sobre ele. Sobre suas mentiras.
Para quê?
Ela não existia para Luís.
Talvez nunca tivesse tido realmente
o propósito de atender o pedido de Alan. Talvez tivesse sido um plano. Quem
lhe garantia que Luís iria entregar o veículo pela manhã?
De qualquer forma, ela cumpriria o
trato até o fim. Ao menos sairia daquele hotel de cabeça erguida, com sua
integridade intacta.
Olhou ao redor à procura da fita com
que prendera os cabelos antes de vir ao encontro de Luís. Vasculhou todos os
lugares sem encontrá-lo. Ele deveria tê-lo guardado em seu bolso. O que a
irritou. Por alguma razão, queria ir embora do mesmo jeito que viera.
Quando se cansou de procurar, tirou
o fone do gancho e pediu para ser acordada às cinco e quarenta e cinco. Então,
confiante de que não perderia a hora, apagou as luzes. O luar e as luzes da
cidade que se infiltravam pela janela seriam suficientes para orientá-la.
Juntou duas poltronas e se acomodou
da melhor maneira que pôde. Estava exausta. Fechou os olhos e rezou para que o
sono lhe trouxesse algum alívio.
Mas seu coração estava triste demais
para se aquietar e seus olhos se encheram de lágrimas. Não conseguiu contê-las.
Talvez fosse melhor dar vazão a elas enquanto estava sozinha. Pela manhã teria
de se mostrar forte outra vez.
— Shantelle...
Ao ouvir seu nome, tentou abrir os
olhos. Eles se recusavam a tirá-la de seu torpor.
— Shantelle.
Antes o chamado parecera distante.
Agora estava muito perto.
Luís estava de pé, olhando para ela
com o cenho franzido. Ela estranhou. Por que motivo ele a acordara?
Sentou-se e só então percebeu que
ele já havia tomado banho e se vestido. Isso só podia ter um significado. A
recepção havia falhado e eles haviam esquecido de acordá-la.
— Que horas são? — Ela se levantou.
— Não está atrasada, se é isso que
está pensando. Ainda não são cinco e trinta. Eu pedi que servissem o café da
manhã no quarto.
— Para mim?
— Para nós dois.
Bateram à porta naquele instante.
Enquanto Luís se levantava para atender, ela foi ao banheiro. Estava perplexa
com o rumo que os eventos estavam tomando. Luís estava muito sério. Vestira-se
de azul-marinho. Até os tênis eram dessa cor. O que ele pretendia fazer tão
cedo?
Mirou-se ao espelho e se arrependeu
disso. Teria sido melhor se Luís tivesse permanecido no quarto em vez de ter
ido acordá-la. Seus olhos estavam vermelhos e inchados. Na esperança de que
ele ainda não tivesse notado e descoberto que passara a noite chorando, lavou
os olhos repetidas vezes com água fria.
Os cabelos estavam rebeldes.
Penteou-os com os dedos e conseguiu relativo sucesso. Por fim, alisou as roupas
e se preparou para ir ao encontro de Luís pela última vez.
O café havia sido servido na sala.
Luís já estava sentado à mesa.
— Tome o café enquanto está quente —
ele disse.
— Obrigada — ela respondeu
automaticamente, mas não se moveu. Não queria aceitar mais nada que viesse de
Luís.
— Não faça cerimônia — ele insistiu.
— Coma algo.
— Não estou com fome. — O que era
verdade. — Pedi para ser acordada às cinco e quarenta e cinco. Não esperava que
você quisesse se levantar antes.
— Pretendo estar na porta da garagem
no minuto que o toque de recolher for suspenso.
Shantelle
pestanejou. O que Luís pretendia? Desaparecer para que não o perturbassem mais
por causa do ônibus?
— Para ir aonde?
— Negócios.
Ele mordeu um croissant. E ela
mordeu o lábio. Não podia suportar tanta indiferença por seu problema e de seu
irmão.
— E se o ônibus não for entregue às
sete horas? Para onde poderei telefonar?
— Quem sabe?
— Isso não é justo, Luís — Shantelle
protestou.
— Talvez não — ele concordou. — É
pegar ou largar.
Foi mais forte do que ela. Estava
magoada e frustrada demais para suportar mais um golpe. Esqueceu o orgulho, o
bom senso e deu vazão a sua amargura.
— Eu nunca o usei como você me usou
a noite passada. Não sei por que se acha no direito de brincar comigo. Mas sua
tática não dará certo desta vez. Não aceitarei suas mentiras.
Ele parou de comer no mesmo
instante. Ela estava pálida. Sua voz soou rouca quando prosseguiu:
— Eu irei atrás de você quando sair
daqui. Serei sua sombra até que o ônibus seja entregue na porta do Europa como
você prometeu.
— De que mentiras você está falando?
— Luís perguntou.
— Não se atreva a se fazer de
inocente! Foi muito conveniente de sua parte fingir que não havia nada entre
você e Cláudia Gallardo enquanto esteve comigo.
— Não estava e não estou casado com
ela! — Luís se defendeu.
— Comprometidos! Foi esta a palavra
que sua mãe usou. A mulher de quem você me escondeu durante todo o tempo em que
moramos sob o mesmo teto em Buenos Aires. A pessoa que me contou quem você
realmente era.
— Quando foi isso? — Luís quis
saber, atônito.
— Um dia antes de eu deixá-lo. Logo
depois que você me excluiu, pela última vez, da convivência com sua família,
não me dizendo que o convite que ela lhe fez era extensivo a mim.
Luís se levantou da cadeira com
tanto ímpeto que quase a derrubou.
Shantelle
assustou-se por um instante, mas se recusou a manter silêncio. Não era ela quem
tinha motivos para fugir de uma confrontação. Não era ela quem deveria responder
por uma série de erros.
— Você escondeu isso de mim! — ele
acusou.
— Você também! — ela protestou.
— Você preferiu acreditar em minha
mãe e não em mim! Você permitiu que ela destruísse nossa relação sem me consultar!
A reação de Luís deixou Shantelle
perplexa.
— Você não confiou em mim! Não
acreditou em mim! Você não teve coração! Como posso querer arriscar minha vida
por você?
Shantelle não estava entendendo
nada. O que tudo aquilo tinha a ver com a vida de Luís estar em perigo por
causa dela?
— O que está querendo dizer? —
perguntou.
Luís apertou os punhos. Ergueu o
queixo e respirou fundo. Não era orgulho que estava em jogo naquele momento,
mas honra.
— Volte para seu hotel e fique
aguardando junto com seu irmão. Se eu não aparecer por lá com o ônibus, não foi
por falta de tentativa.
— Você? Você dirigirá o ônibus?
Luís estava se encaminhando para a
porta. Não respondeu. Permaneceu em silêncio mesmo quando a ouviu gritar seu
nome.
— Luís!
Shantelle foi invadida por um súbito
pressentimento de que não tornaria a vê-lo. Não se conformava. Precisavam conversar.
Nada mais fazia sentido. Ela não sabia o que pensar.
A ordem era para que voltasse ao
hotel e aguardasse. Aquela seria a única atitude lógica a tomar. Não havia mais
o que fazer. Ela estava sozinha no quarto.
CAPÍTULO VIII
Alan estava
à espera de Shantelle no saguão do hotel enquanto aproveitava para acompanhar
os checkouts de seus clientes. Assim que a viu surgir, precipitou-se para a
porta.
— Você está bem? — ele perguntou,
examinando-a atentamente.
— Estou. — Ela não parou para
responder. Seguiu em linha reta para os elevadores, determinada a não discutir
com o irmão. — Minha bagagem ainda está na suíte?
— Está. Imaginei que você gostaria
de trocar de roupa.
— Eu quero. Preciso da chave.
— Shantelle... — Alan tentou
conversar ao mesmo tempo que entregava a chave.
— Obrigada. Não demorarei mais do
que dois minutos.
— O que houve...?
— Luís foi buscar o ônibus — ela o
interrompeu.
— Ele? Em pessoa? — Alan espantou-se.
Shantelle fez um movimento afirmativo com a cabeça.
— Disse que não será sua culpa se
não conseguir chegar aqui às sete horas. Estão todos prontos?
— Os que não estão fechando suas
contas no caixa, estão tomando café no restaurante — Luís respondeu, ainda
atônito com o envolvimento inesperado de Luís no caso. — Coma algo, você
também. Teremos um longo dia pela frente.
Ela chamou o
elevador. Por sorte, a porta abriu de imediato.
— Você pediu que preparassem um
lanche para servirmos no ônibus?
— Sim. Já providenciei tudo.
Shantelle...
— Não posso prender o elevador,
Alan. Descerei logo.
A porta tornou a fechar, deixando
Alan com o cenho franzido.
Shantelle deu um suspiro de alívio.
Não escondera nenhuma informação de Alan que dissesse respeito à situação em
que se encontravam.
Quanto ao problema mal-resolvido
entre ela e Luís, talvez ele tivesse motivos para pensar mal de sua atitude. A
mãe poderia ter mentido. Talvez Elvira Rosa Martinez e Cláudia Gallardo
tivessem conspirado contra ela.
Qual seria a verdade?
Dois fatos se evidenciavam contra a
escuridão da ignorância. Se ela tivesse contado a Luís sobre sua mãe tê-la
procurado dois anos antes, agora ela não estaria confusa sobre os sentimentos
dele. Nesse caso, a culpa teria sido toda dela. Mas, mesmo que sua culpa
ficasse provada e Luís tivesse razões para pensar o pior sobre sua conduta, ele
não poderia tê-la tratado como a tratara na noite anterior. Aquilo fora
imperdoável.
Não adiantava, portanto, se deixar
perseguir por conjeturas. Tampouco adiantaria se entregar ao desespero e ao
arrependimento. Não havia mais nenhuma chance de um futuro para eles. Era mais
do que tempo de esquecer o passado. Ou, ao menos, de aceitar que Luís nunca
poderia ser seu.
Mas se ele conseguisse trazer o
ônibus, ao menos o veria por mais alguns minutos antes de se dizerem adeus para
sempre.
O elevador parou e ela seguiu pelo
corredor em direção aos quartos. Mas foi só depois que entrou em sua suíte e
fechou a porta que refletiu sobre a declaração de Luís sobre estar arriscando a
vida por ela com a história do ônibus.
Por que teria dito isso? O perigo na
rua seria tão grande assim? Não. Não acreditava que Alan seria capaz de colocar
as vidas de seus clientes em cheque.
Mas as palavras soaram fatídicas.
Luís falara sério.
Aquilo não fazia sentido. Por que
Luís jogaria com a própria vida por sua causa, se era verdade que a desprezava?
Os Martinez eram poderosos em todo o mundo. Se surgisse algum problema,
bastaria ele estalar os dedos para resolvê-lo.
Não. O que Luís dissera não fazia
sentido.
Shantelle
colocou roupas limpas. Uma outra calça e uma outra camiseta, desta vez verde,
mas também com o logotipo da agência. Escovou os cabelos e se sentiu satisfeita
com o resultado.
Deu uma última olhada na suíte para
se certificar de que não haviam esquecido nada, pegou as malas e desceu para o
saguão. Deixou a bagagem aos cuidados do Alan e se afastou em direção ao
restaurante antes que ele tivesse chance de formular outra pergunta.
Ainda estava abalada demais com o
encontro com Luís para ter condições de responder perguntas.
A maioria das pessoas estava saindo
do restaurante quando ela entrou. O tempo estava esgotando. Encaminhou-se para
o bufê e examinou os pratos. Não estava sentindo apetite, mas seu senso
prático ordenava que repusesse as energias para a viagem.
Pegou um copo de suco de frutas,
duas bisnaguinhas, algumas fatias de presunto e de queijo e se sentou a uma
mesa vazia. Não estava com disposição para conversar com ninguém.
Às dez para as sete, voltou para
junto de Alan e se preparou para o trabalho, respondendo a dezenas de
perguntas e tentando tranqüilizar os passageiros com relação à longa viagem que
os aguardava.
Seriam dez horas de estrada entre La
Paz e Santa Cruz, se tudo corresse bem. De lá, tomariam um avião para Buenos
Aires, e então seguiriam para a Austrália, onde mantinham residência.
Estavam todos muito ansiosos. Alguns
tinham medo do que encontrariam pela frente. Outros, principalmente os que
haviam sofrido os males da altitude, queriam ir embora de qualquer jeito.
Os australianos não faziam nenhuma
idéia das implicações de uma ocupação militar. O Exército não fazia parte de
suas vidas. A única ocasião que viam soldados pelas rua era no dia de Anzac, quando realizavam uma
parada em homenagem aos veteranos de guerra. A única experiência com tanques
remetia a visitas ao museu ou a reportagens pela televisão ou ainda a filmes de
cinema.
Os minutos pareciam horas. Um
burburinho nervoso cercava a pequena multidão. Alan orientou-os para que se
mantivessem no interior do hotel, enquanto ele verificava se o ônibus estava
chegando.
Shantelle
exibia um sorriso de incentivo e de falsa confiança. Precisou de grande
concentração para obter esse resultado. A custo conseguia disfarçar o
nervosismo. A medida que os segundos passavam, a ansiedade teimava em assumir o
controle.
Se o ônibus não chegasse, isso
significaria que Luís havia sido preso.
Deus! Por mais que Luís a tivesse
magoado, não queria que ele sofresse fisicamente. Luís afirmara que estava se
arriscando por ela. Mas não tinha culpa, tinha? A escolha fora dele.
Os pensamentos voltaram subitamente
para o passado. Luís havia lhe contado, uma vez, a história de seu irmão mais
velho, Eduardo. Na época, quando houve conturbações políticas na Argentina, a
polícia militar havia tomado Eduardo como um dos jovens dissidentes e levado-o
para interrogatórios. E Eduardo nunca mais fora visto. O irmão de Luís fora um
dos muitos desaparecidos nesse regime.
Em Buenos Aires, ela mesma havia
presenciado a passeata das mulheres que se intitulavam as Mães de Maio, em
protesto ao desaparecimento de seus filhos.
Shantelle sentiu um arrepio lhe
percorrer o corpo. Isso poderia acontecer também na Bolívia? Esperava que não.
E se, por infelicidade, Luís fosse realmente preso, Elvira Rosa Martinez tinha
poderes suficientes para negociar sua libertação. Eduardo, provavelmente, não
havia sido identificado a tempo.
Um pensamento terrível assaltou-a. E
se Luís também não tivesse tempo para se identificar?
Alan entrou apressado.
— O ônibus chegou!
Shantelle
deu um suspiro de alívio.
— Peguem suas coisas e venham comigo
— Alan ordenou. — Lembrem-se das instruções. As mulheres devem subir imediatamente.
Os homens devem permanecer junto ao bagageiro para ajudar. O quanto antes
sairmos daqui, melhor será.
A chegada do ônibus parecia ter
elevado os ânimos. A excitação estava evidente no rosto das trinta pessoas que
deixavam o hotel.
Shantelle posicionou-se no fim da
fila para se certificar de que nada havia sido esquecido. Quando se aproximou
da porta, sentiu o coração mais leve. Luís estava ao volante. São e salvo.
Poderia voltar para o Plaza Hotel, sem perigo, assim que entregasse as chaves
para Alan. Aquela seria a última vez que o veria.
Não deveria estar se sentindo tão
triste. Aliás, isso era um absurdo depois do que ele fizera na noite anterior.
Mas suas pernas se recusavam a obedecê-la. Estavam ansiosas por levá-la à
calçada, para que ela pudesse ficar perto de Luís pela última vez antes que ele
se despedisse.
Luís estava junto à porta do ônibus.
Quando a viu, seus olhares se travaram. Era como se o resto do mundo tivesse
deixado de existir, e eles estivessem ali sozinhos, ligados por uma força que
suplantava a realidade.
De repente, ele interrompeu o
contato e se dirigiu a Alan.
A intensidade daquele olhar abalou-a
a ponto de não conseguir concatenar os pensamentos.
Precisava se concentrar no trabalho.
Cabia-lhe a tarefa de organizar o embarque das mulheres enquanto Alan cuidava
da bagagem. Mas elas estavam obedecendo a seqüência da fila e não havia nada
que necessitasse sua intervenção.
Por outro lado, em vez de zelar para
que as malas fossem colocadas nos devidos compartimentos, Alan estava obviamente
discutindo com Luís. Ela não pôde se controlar.
— Obrigada por nos trazer o ônibus,
Luís — disse, interrompendo a conversa do dois.
Alan endereçou a ela um olhar
desconfiado.
— Ele insiste em continuar
dirigindo-o.
Shantelle pestanejou.
— Como?
— Luís quer seguir conosco.
— Até Santa Cruz? — Shantelle
perguntou, perplexa.
— Até o inferno, se for necessário.
— Mas, por quê?
Ele deu um sorriso indecifrável.
— Porque você estará neste ônibus,
Shantelle. Nosso assunto ainda não está resolvido.
Ela deveria ter dito que estava, que
não restava nada a ser esclarecido, mas as palavras ficaram presas em sua
garganta.
Era uma loucura. Aquela decisão não
poderia resultar em nada de bom. Eles haviam se magoado, muito, mutuamente.
Por outro lado, ela podia sentir que Luís estava diferente. Seu olhar e seu
modo de tratá-la estavam mais brandos. Não havia mais sarcasmo, muito menos
desprezo em suas atitudes.
Alan tentou protestar, mas Luís não
permitiu.
— O ônibus é meu. Se não quer que eu
o conduza, mande seu pessoal descer.
Os compartimentos de bagagem estavam
sendo fechados. As mulheres já haviam escolhido seus lugares e os homens
estavam se reunindo a elas.
— Droga, Luís! Deixe minha irmã em
paz!
Luís não respondeu. Nada nem ninguém
poderia mudar sua decisão. Ou Alan aceitava sua presença no ônibus ou não
deixaria La Paz tão cedo. E Shantelle sabia que não importava o que Alan fosse
decidir. Em qualquer hipótese, Luís não a deixaria enquanto não resolvesse tudo
que tivesse de ser resolvido. Fosse o que fosse.
Menos sexo! Shantelle não permitiria
que Luís tornasse a usá-la. Mas não deveria ser sexo, obviamente, o que ocupava
a mente dele no momento. Não em um ônibus lotado. Se restava algo a ser feito,
portanto, não haveria lugar melhor. Ela estaria segura entre trinta pessoas.
— É melhor fazer o que ele quer,
Alan, do que ficar aqui. O pessoal já embarcou. Vou subir e providenciar a
contagem.
— Sei conduzir um coletivo melhor do
que você, Luís — Alan protestou.
— Não terá condições de dirigir
enquanto estivermos em La Paz. Mal dará conta de acalmar seus clientes. Não
será uma viagem de lazer, você sabe disso. Prometo lhe entregar a direção assim
que sairmos da cidade.
— É claro. Então você terá bastante
tempo para destroçar ainda mais o coração de Shantelle.
Shantelle ouviu as palavras do irmão
e hesitou, mas preferiu não se intrometer entre os dois.
— Não é justo, Luís — Alan
prosseguiu. — Ela nunca se recuperou do que houve entre vocês.
— Nem eu, meu amigo — foi a resposta
de Luís. — Nem eu.
Shantelle sentiu um baque no peito.
Seria verdade?
— De que adianta isso, homem? — Alan
insistiu. — Você nunca se casará com ela. Eu avisei-a desde o começo, mas ela
não quis me escutar.
— Você também, Alan? — Luís disse
com uma frieza que gelou o sangue de Shantelle. — Nesse caso, também é
responsável.
— O que está insinuando? — Alan
protestou.
— Não estou insinuando. Estou
avisando-o para que fique fora de meu caminho e para que não tente interferir
em meus planos.
Shantelle não fazia idéia do que
Luís tinha em mente. E não estava em condições de tentar adivinhar. Precisava
se certificar de que não estava faltando ninguém no ônibus para poderem iniciar
a viagem.
Luís sentou-se ao volante e Alan
assumiu o posto de guia da excursão. Ligou o microfone, apresentou Luís ao
grupo e deu uma rápida explicação sobre a viagem que estava se iniciando.
Shantelle
ocupou o primeiro banco, logo atrás do motorista. Não conseguia prestar
atenção às palavras de Alan. Não era o trajeto em si que a preocupava, mas a
presença de Luís. O que ele pretendia realmente? Que fim teria aquela
história?
CAPÍTULO IX
As ruas de
La Paz estavam praticamente vazias. Quase não havia carros e poucos dos
pedestres eram civis. A sensação de estarem se movendo em uma zona de guerra
era forte e opressiva. O silêncio no ônibus era total. Ninguém nem sequer
sussurrava.
Shantelle
notou que Luís estava evitando as ruas centrais. Era evidente que ele sabia do
perigo de serem detidos. Quando avistava um grupo de soldados, pisava no
acelerador, antes que eles tivessem tempo de reagir.
Alan deu
instruções para que todos se portassem com naturalidade. Não deviam se
levantar, mas também não deviam se abaixar nos bancos. Não deveriam fazer
nenhum movimento que pudesse despertar suspeitas.
Como
turistas, eles não eram alvos. Não estavam envolvidos no conflito. E foi nessa
esperança que Shantelle se agarrou. Afinal, se Alan estivesse errado em sua
suposição, todos eles poderiam estar em maus lençóis.
Estavam
seguindo por uma rua deserta quando um tanque surgiu em um cruzamento e veio
em direção a eles. Era parar ou bater. Luís parou. O tanque também. E para o
terror de todos, a torre girou e o canhão apontou para eles.
Homens e
mulheres gritaram.
— Fiquem quietos! — Alan ordenou ao
microfone. — E não se levantem!
Os gritos cessaram, mas o clima era
de pânico. Shantelle estava com a respiração suspensa. O canhão estava apontado
diretamente para Luís. Ele deveria ter levantado suspeitas. Era o único que
apresentava as características físicas do povo local.
Levantou-se de um salto e abraçou-o
pelo pescoço de forma que os soldados pudessem ver seus cabelos. Eles tinham
de saber que não eram nativos que lotavam o ônibus.
Alan chamou-a.
— O que está fazendo?
— Você não entende? — ela explicou,
aflita. — Luís é moreno. Eles podem estar confundindo-o com um boliviano.
Apresente-se. Diga que somos turistas e que temos gente doente à bordo.
— Você está certa! Abra a porta,
Luís.
Alan gesticulou para o tanque para
chamar a atenção sobre si. Luís pressionou o botão que abria automaticamente a
porta.
— Não se afaste do ônibus — Luís
avisou. — Não faça nenhum gesto que possa ser interpretado como uma ameaça.
Os minutos que se seguiram foram de
extrema tensão. Alan falou em espanhol e explicou rapidamente que eram turistas
australianos.
Ninguém saiu do tanque. Não houve
resposta. Mas o canhão tornou a se mover e voltou à posição original. Em
seguida, ele começou a se afastar e seguiu seu caminho.
O alívio foi geral. Alan voltou para
dentro do ônibus e Luís fechou a porta. Alguns assobiaram, outros aplaudiram. E
só nesse momento, Shantelle deu-se conta de que ainda estava com os braços ao
redor do pescoço de Luís.
Antes que se afastasse, Luís
segurou-lhe a mão direita e apertou-a. O toque não demorou mais do que alguns
segundos, mas foi o suficiente. Havia muito a ser feito. A situação ainda era
delicada.
Alan deu-lhe um tapinha no ombro.
Havia um sorriso em seu rosto.
— Você foi esperta.
Ela fez um gesto de agradecimento
com a cabeça e retornou a seu lugar.
Alan fez um pequeno discurso ao
microfone, mas Shantelle não conseguiu prestar atenção. Ainda sentia o calor da
mão de Luís na sua e estava assustada com a descoberta do quanto ele ainda
exercia um forte fascínio sobre ela. Era como se ele a tivesse marcado para
sempre: corpo, mente e espírito.
Bastava tocá-la para que uma reação
química instantânea desencadeasse. O que não poderia continuar acontecendo. Não
depois do que ele lhe fizera na noite anterior. Aquela fora a última vez. Não
se entregaria mais à voluptuosidade de Luís. Se ele a quisesse, teria de ser
por algo mais, não por puro sexo. Respeito, para começar. E honestidade. Se
eles resolvessem tentar de novo, o orgulho teria de ser eliminado. Assim como
os segredos.
Quanto mais pensava, mais curiosa
ficava. E mais determinada a não ceder. Por outro lado, por que tinha tanta
certeza de que Luís só a queria fisicamente? Talvez ele precisasse saber a
verdade sobre o rompimento tanto quanto ela. Ou não conseguiria seguir em
frente com sua vida. Também como ela.
O ônibus estava chegando ao ponto
mais alto da viagem, sobre a colina que dava para o aeroporto. Faltava pouco
para saírem da cidade e pegarem a estrada que os levaria a Santa Cruz. O
perigo, porém, era ainda maior naquela área.
A tensão no ônibus tornava o ar
quase irrespirável. Havia jipes do Exército parados à frente e soldados de
ambos os lados da estrada.
Luís diminuiu a velocidade e se
preparou para parar ao menor sinal. Mas os guardas, apesar dos olhares desconfiados
que lançaram para o ônibus, não os proibiram de seguir viagem.
Parecia um milagre. Os
excursionistas recuperaram o bom humor e relaxaram pela primeira vez desde que
receberam a notícia sobre o fechamento da cidade. Alguns contaram piadas. Alan
narrou episódios interessantes acontecidos em viagens anteriores. A ameaça foi
esquecida.
Ninguém se lembrou da revolta dos
fazendeiros e homens do campo.
Quando Luís chamou Alan, ela
estremeceu. Poucos metros a frente, havia uma barricada. Eles pareciam ter cavado
uma trincheira. Uma verdadeira multidão bloqueava a estrada.
Shantelle
sentiu que empalidecia. Seria impossível evitar o obstáculo.
— Pise até o fim, Luís — Alan disse.
— É nossa única chance.
— E se não conseguirmos? — Luís
hesitou.
— Pode começar a rezar.
— Preparem-se! — Luís tomou a
decisão e acelerou.
— Homens, levantem-se depressa,
peguem toda a bagagem que guardaram nos compartimentos sobre suas cabeças e
coloquem-na sob os bancos ou no corredor — Alan ordenou, batendo palmas para
agilizar a ação. — Nosso motorista tentará vencer o cerco. Com a velocidade, os
objetos poderão voar pelos ares. Não queremos que ninguém se machuque.
As instruções foram seguidas à
risca. A velocidade dificultava a permanência dos homens em pé. Assim que
terminaram de colocar a bagagem no chão, Alan mandou que se sentassem.
— Cruzem os braços e abaixem as
cabeças para se protegerem do impacto — Alan prosseguiu.
Shantelle rezava com fervor. Luís
precisava conseguir. Se o obstáculo fosse grande demais, eles poderiam sofrer
um grave acidente.
— Aqueles que têm problemas de
coluna, tentem se proteger com almofadas ou casacos.
O único som vinha da movimentação e
das respirações. O momento crítico estava se aproximando. Shantelle pensou em
Luís. Ele não deveria estar ali. Por que estava se arriscando tanto?
Ela o viu se levantar e se abraçar
ao banco. Teria visto além da barreira? De qualquer modo, seria impossível
parar o ônibus àquela altura. E se o pior acontecesse, Luís e Alan seriam os
primeiros a serem atingidos. Depois ela.
Aquele poderia ser o fim. E ela
nunca saberia...
Não houve tempo para maiores
conjeturas.
O ônibus bateu contra algo e se
precipitou para o alto. Shantelle tentou espiar pela janela e só conseguiu ver
o vazio. Deus! Eles não conseguiriam. O veículo era longo demais. Mesmo que as
rodas da frente alcançassem o outro lado da trincheira, as rodas de trás
ficariam suspensas.
Houve um forte baque conforme a
parte dianteira chegava do outro lado. Por alguma razão, o veículo havia
atravessado. Uma parte parou no acostamento, a outra no asfalto. O ônibus
ziguezagueou. Luís segurou o volante e lutou com todas suas forças para
controlá-lo.
Shantelle olhou para ambos os lados
da estrada e agradeceu mentalmente por não haver nenhum outro tipo de
obstáculo.
Bolsas e sacolas estavam espalhadas
pelo corredor. Ela ouviu resmungos e gemidos, mas ninguém gritou nem reclamou.
Apesar de tudo, sabiam que Luís estava tentando salvá-los.
Não saberia dizer quanto tempo
passou até que Luís conseguisse controlar o ônibus, diminuir a velocidade e
finalmente parar.
— Uma das rodas traseiras ficou
presa — Luís avisou e se levantou. — Vou dar uma olhada.
— Você foi incrível, homem — Alan
elogiou-o.
— Fiz o que podia — Luís respondeu.
— Shantelle, cuide do pessoal — Alan
pediu.
— Está bem.
Ela se levantou, apesar do tremor
nas pernas. Luís fitou-a, mas não disse nada. Em seguida, saiu do ônibus atrás
de Alan.
— Era eu quem deveria ter dito algo
— Shantelle censurou-se. Ao menos um obrigada. O que Luís deveria estar
pensando? Que estava ocupada demais tentando não desmaiar de medo?
Mas aquele não era o momento para se
preocupar consigo mesma. Foi até o banco de Alan e pegou o microfone.
— Estão todos bem?
Alguns hematomas foram reportados,
mas nenhum corte nem nada de mais sério.
— Quantos outros problemas ainda nos
aguardam? — quis saber Ron, o homem que vinha criando confusões desde o
primeiro dia da excursão.
— Sinceramente, não sei — Shantelle
respondeu.
— Maldição! Alan não deveria...
— Ei! Espere um pouco, Ron — um
excursionista interrompeu-o. — Alan nos avisou que poderia haver dificuldade.
Você não quis saber. Foi o que mais insistiu que ele nos tirasse de La Paz.
Chegou a ameaçá-lo de acabar com sua agência caso ele não o levasse de volta
para casa no dia marcado.
— É verdade — concordou outro. — É
melhor você ficar de boca fechada. Você é o maior culpado. Falou tanto que
acabamos decidindo apoiá-lo. Agora estamos em perigo por nossa própria culpa.
Devemos dar graças a Deus, por estarmos inteiros, ao menos.
— Pense no lado positivo — disse uma
senhora. — Estamos vivendo uma grande aventura. Teremos muito o que contar a
nossos amigos e familiares.
— Sim. Pena que não deu para filmar
a corrida.
Shantelle suspirou de alívio ao
perceber que a rebelião estava controlada.
— Bem, acho que seria uma boa idéia
se cada um localizasse sua bagagem enquanto Alan e Luís consertam a roda.
— Eles conseguirão arrumá-la sozinhos?
— alguém perguntou.
— Alan é um mecânico excelente.
Tenho certeza de que logo estaremos prosseguindo viagem — Shantelle respondeu,
confiante.
Os ruídos abafados vindos do lado de
fora do ônibus indicavam que o conserto estava sendo feito. Mais seguros, os
viajantes trouxeram as respectivas bolsas e sacolas para seus bancos.
Shantelle cogitava se Luís e Alan
estariam se entendendo enquanto trabalhavam. Seria ótimo se eles conseguissem
vencer a hostilidade. Já bastava ela ter de enfrentar Luís. Não queria ter de
se defender também de seu irmão.
Uma das mulheres sugeriu que
apanhassem as garrafas térmicas fornecidas pelo hotel e tomassem café.
Shantelle vetou a idéia. Ainda não
estavam longe o bastante dos revoltosos para facilitarem. Não havia tempo a
perder. Assim que Luís e Alan concluíssem os reparos, deveriam seguir
imediatamente para Santa Cruz. Ainda faltavam nove horas para que alcançassem o
destino.
Ninguém protestou.
Os ruídos finalmente cessaram. Luís
e Alan voltaram para o ônibus. A curiosidade era geral. Shantelle tentou
adivinhar se o conserto tivera sucesso. O sorriso de Alan foi a resposta. Luís
parecia satisfeito, mas sua expressão continuava séria.
Alan reassumiu seu posto.
— Algum problema? — perguntou.
Ninguém se queixou. Alan assentiu
com a cabeça e fez um sinal para que Shantelle voltasse a seu lugar. Luís se
sentou atrás do volante e apertou o botão que fechava a porta.
— Ok. Vamos continuar nossa viagem.
Daqui a duas horas, faremos uma parada. Se alguém precisar parar antes, por favor,
avise. Luís, por favor entregue-me a direção. Você merece um descanso. Seus
músculos devem estar doloridos depois de tanto esforço.
Shantelle franziu o cenho. Luís
teria sofrido uma distensão ou algo assim?
— Que tal darmos uma salva de palmas
a ele pelo que fez por nós? — Alan sugeriu.
Todos aplaudiram. Luís agradeceu com
um gesto de cabeça e um sorriso breve. Alan desligou o microfone e se sentou
ao volante. Antes de ligar o motor, trocou algumas palavras com Luís.
Shantelle
ficou observando-os. Esperava que Luís fosse ocupar o lugar deixado por seu
irmão. Em vez disso, ele sentou-se ao lado dela.
Não houve tempo para outra reação
que não fosse a surpresa. Um instante depois, Shantelle se afastou para junto
da janela, como se tivesse medo de que Luís a tocasse. Um absurdo, é claro. O
que Luís poderia fazer com ela em um ônibus lotado? Além disso, Alan estava no
banco da frente.
— Você se machucou? — ela perguntou,
sem coragem para fitá-lo nos olhos.
— Não.
— Por quê, então, concordou em
passar a direção para Alan?
— Porque preciso muito falar com
você.
O coração de Shantelle bateu mais
forte.
Duas horas de relativa privacidade,
pensou, até que fizessem uma nova parada. Com o ronco do motor, Alan não
poderia ouvi-los. Além disso, estava concentrado demais na estrada para tentar
ouvir conversas alheias.
Shantelle se obrigou a encarar Luís.
— Por quê? — perguntou simplesmente.
Os olhos castanhos pareceram ficar
ainda mais escuros.
— Fale-me sobre seu encontro com
minha mãe.
O tom foi ríspido. Shantelle adivinhou
que a responsável por isso não era ela.
— De que adianta remexer no passado?
— Para mim, o passado é o presente —
Luís murmurou.
Shantelle balançou a cabeça.
— Você me decepcionou muito, Luís.
Você me traiu.
— Não, Shantelle. Eu jamais a traí.
A resposta pareceu sincera.
Shantelle fechou os olhos.
— Por favor, conte-me tudo. Conte
cada detalhe de sua conversa com minha mãe.
A ênfase sobre a mãe foi repetida.
Shantelle se preparou para reviver a amargura daquele dia fatídico. O dia que
Elvira Rosa Martinez partira seu coração e mudara o curso de sua vida.
CAPÍTULO X
Dois anos
não haviam conseguido apagar a lembrança do encontro com Elvira Rosa Martinez.
Shantelle havia tentado esquecê-lo e enterrá-lo, mas bastou ser dada a ordem
para a exumação, e as cenas voltaram, tão nítidas como se tudo tivesse
acontecido no dia anterior.
— Você afirmou que esteve com minha
mãe um dia antes de me deixar — Luís incentivou-a.
— Sim, mas os problemas começaram
muito antes — Shantelle confessou, mais uma vez de volta à época em que morara
com Luís no apartamento que ele possuía no bairro mais elegante de Buenos
Aires, chamado Recoleta. Quando voltara com ele do Amazonas, não imaginava que
Luís não quisesse misturar sua vida passional com sua vida familiar e que a mãe
dele morava naquele mesmo bairro.
— Minha mãe a procurou antes? — ele
indagou, perplexo.
— Não. Mas você evitou nos
apresentar. Você evitou, aliás, me apresentar a todos seus amigos e conhecidos.
— Shantelle encarou-o. — Por quê, Luís?
Ele
sustentou o olhar de Shantelle sem pestanejar.
— Por que não queria dividi-la com
ninguém.
— Tinha planos de me deixar
participar de sua vida um dia?
— Acho que isso seria inevitável,
caso você tivesse continuado comigo.
— Você se envergonhava de mim?
— Por que deveria?
— Porque eu não pertenço a sua
classe social.
— Foi o que minha mãe disse?
Shantelle respondeu com uma
acusação.
— Se você não tivesse me isolado,
nada do que ela dissesse me abalaria!
Incapaz de continuar falando,
Shantelle olhou pela janela, embora não conseguisse enxergar a vista.
Lembrou-se dos longos e solitários dias esperando que Luís voltasse do trabalho.
Não tinha ninguém com quem conversar. Sua única distração era caminhar pelas
ruas do bairro. Não que isso a aborrecesse. Buenos Aires era uma cidade
fascinante. Não era à toa que a chamavam de Paris das Américas.
Quase todos os dias, assistia às
apresentações de músicos e mímicos nas praças, ou visitava galerias de arte.
Uma tarde, foi até o cemitério onde Eva Perón descansava.
Embora estivesse vivendo em um país
estrangeiro e precisasse se adaptar a sua cultura, não tivera nenhuma
dificuldade até o dia que a mãe de Luís se apresentou. E a Cláudia Gallardo.
— O que mais doeu foi sua falsa
solidariedade — Shantelle observou. — Ela não parava de dizer o quanto sentia
por eu ter sido tão cega sobre suas intenções para comigo. Que você, Luís,
errara muito em não revelar a posição que me reservara em sua vida.
— Que posição era essa, de acordo
com minha mãe?
— De sua amante, é claro. De que eu
servia apenas para satisfazer seus desejos. E que não era digna de me tornar
sua esposa. Ela disse que os argentinos usam as mulheres como eu de forma a
poderem se comportar com suas noivas e as levarem virgens até o altar.
— Você acreditou que eu seria capaz dessa
infâmia? Eu não faria isso com nenhuma mulher, quanto mais com a irmã de um
amigo!
Os olhos de Shantelle faiscaram.
— Você me usou ontem à noite. Nega
isso?
— Você tinha uma escolha — Luís se
defendeu. — Você aceitou minha proposta. Você aceitou ser tratada da mesma
forma que me tratou há dois anos. Como um objeto sexual.
— Jamais usei você, Luís. Disse
aquilo porque...
— Porque as palavras de minha mãe
significaram mais do que eu e nosso relacionamento — ele terminou por ela.
— Não foram apenas palavras, Luís.
Eu conheci Cláudia Gallardo.
— Cláudia disse, por acaso, que era
minha noiva?
— Não. Ela disse que estavam
comprometidos.
— A própria Cláudia?
Shantelle
hesitou. Não conseguia se lembrar com clareza. Talvez ela não tivesse
mencionado a palavra compromisso, mas a implicação era essa.
— Quando eu me casar com Luís... Ela
disse isso tantas vezes durante e após o almoço, que a frase parecia um refrão.
Mas quem usou a palavra compromisso, creio que foi sua mãe.
— Onde aconteceu esse almoço? — Luís
quis saber.
— Em sua casa, na avenida Alvear.
Ela viu Luís contrair a mandíbula e
apertar os lábios.
— Como foi feito o convite?
— Sua mãe tocou a campainha e eu fui
abrir a porta. Eram nove e trinta da manhã. Ela se apresentou e me fez o
convite. — Shantelle sentiu um gosto amargo na boca. — Disse que seria bom para
eu aprender a conhecê-lo melhor.
Shantelle fechou os olhos. Estava
cansada. De que adiantaria continuar com aquela conversa? O presente estava
complicado o suficiente.
Alan estava percorrendo o platô
andino em relativa velocidade. O tempo, ao menos, os favorecia. O dia não
poderia estar mais bonito.
Fora em um dia claro e ensolarado
como aquele que Elvira Rosa Martinez destruíra sua felicidade.
Seu irmão tentou preveni-la sobre a
família de Luís quando soube que eles estavam namorando. Enumerou todas as
empresas e propriedades de que tinha conhecimento, mas Shantelle não se
importou. Luís não era do tipo que se vangloriava de sua fortuna. Nunca havia
tocado em nenhum assunto que pudesse humilhá-la.
0 barco que alugou para viajarem
pelo rio Amazonas se assemelhava mais à embarcação usada no filme Uma Aventura
na África com Humphrey Bogart e Katherine Hepburn do que a um iate de luxo. Seu
apartamento era confortável e bem decorado, mas nada ostensivo. O único momento
que Shantelle se lembrou de que Luís era rico foi quando abriu a porta e viu a
mãe dele.
Os cabelos pretos com alguns fios
grisalhos estavam penteados com habilidade profissional. A roupa elegante
sugeria uma grife cara, provavelmente italiana. Talvez Cerruti. Os sapatos e a
bolsa eram um complemento perfeito para o traje.
Durante uma viagem ao Rio de
Janeiro, Shantelle teve a oportunidade de conhecer a mundialmente famosa
joalheria H. Stern. O fabuloso colar de design geométrico foi imediatamente
reconhecido, assim como os brincos, em ouro amarelo e branco e rubis. Os vários
anéis eram também magníficos.
Shantelle sentiu-se uma maltrapilha
em relação à mulher que se encontrava a sua frente. Estava usando um vestido de
algodão, desenhado mais para uma turista esconder a bolsa amarrada à cintura
com o dinheiro e o passaporte, do que para realçar as formas femininas. E as
sandálias eram simples, para ficar em casa, sem saltos.
Luís nunca se importara com seu
guarda-roupa. Pensando bem, ele preferia vê-la nua do que vestida.
O carro com motorista para onde ela
foi levada a fez sentir-se ainda mais desconfortável. Não imaginava que a
família de Luís morasse tão perto. Em cinco minutos, ela a teria alcançado a
pé. Mas, pelo que percebera, pessoas como Elvira Rosa Martinez não se dignavam
a caminhar pelas ruas ao lado de gente comum.
O carro parou diante de enormes
portões de ferro que se abriram automaticamente quando o motorista falou por um
walk-talk. O carro seguiu, então, por
um caminho semicircular e deixou-as à porta principal da mansão.
Para Luís que havia nascido ali, a
residência poderia ser considerada apenas seu lar, mas, para ela, era um
palácio.
Os móveis que lhe mostraram eram
importados da Espanha, da Itália e da França em grande parte. O salão de baile
a fez lembrar o Museu de Versailles com suas paredes espelhadas. E a imagem que
os espelhos lhe devolviam era de alguém que não combinava com o ambiente de
luxo e requinte.
Como era de esperar, Elvira Rosa
Martinez teve a sutileza de não mencionar o fato. Não era necessário. Ao lhe
mostrar as salas e falar sobre os retratos de seus antepassados, ela alcançou
seu objetivo que era lembrar a responsabilidade que cabia a Luís de levar
adiante o nome e a fortuna dos Martinez.
Ao lado de Shantelle, Luís movia as
mãos, incapaz de disfarçar a agitação.
— Que julgamento você fez de mim,
Shantelle? De minha vida com minha família?
Shantelle suspirou, impaciente.
— Você sabe, Luís. Melhor do que eu.
— Um tour pelo mausoléu dos Martinez deve ter sido uma experiência
inesquecível para você — Luís murmurou. — Posso até ver minha mãe lhe mostrando
os tesouros acumulados durante séculos pelas diversas gerações, cujos rostos
você pôde ver nas paredes, em quadros.
O tom de zombaria surpreendeu-a.
— Você não valoriza o que é seu? Não
preza o que sua família lhe deixou?
— O preço é alto demais, Shantelle.
Cláudia participou do tour? — ele
mudou de assunto.
— Não.
A cena daquele dia infiltrou-se na
mente de Shantelle. Cláudia estava usando um vestido de seda espetacular que
realçava o tom bronzeado de sua pele, seus cabelos pretos e brilhantes e os
olhos escuros. A corrente de ouro no pescoço e os brincos delicados chamavam
ainda mais a atenção para sua juventude e beleza. Ninguém precisaria lhe ter dito
que Cláudia Gallardo era a mulher perfeita para um homem da classe social de
Luís.
— Ela chegou por volta do meio-dia.
— Shantelle contou, antecipando a pergunta seguinte.
— Minha mãe apresentou você como
minha amante secreta? Shantelle sentiu que corava.
— Não. Ela foi mais sutil.
Explicou-lhe sobre a amizade que existia entre você e Alan e disse simplesmente
que eu era irmã dele e que estava passando uma temporada em Buenos Aires.
— O que fez não foi para protegê-la,
como deve ter percebido — Luís resmungou, irritado. — Ela sempre quis Cláudia
para mim. Isso fez parte de seu jogo para afastá-la de minha vida.
Apesar do que Luís estava lhe
dizendo, Shantelle entendia a situação de Cláudia. Deveria ter sido horrível
para ela, retornar de uma viagem à Europa, e descobrir que seu homem estava
envolvido com outra mulher. E sua conversa durante o almoço lhe parecera
espontânea e sincera quando mencionou seus planos para o futuro.
Shantelle mal podia esperar que
aquele almoço terminasse. As duas mulheres, de uma só vez, haviam conseguido
destruir todos seus sonhos de continuar vivendo em Buenos Aires com Luís. A
sensação de vazio e de desesperança foi mais forte do que ela. Sua decisão de
voltar para a Austrália foi tomada àquela mesa, em um lugar e perante pessoas
que jamais a aceitariam.
Seus olhos, durante o almoço,
insistiam em pousar sobre um enfeite, talvez na tentativa inútil de evitar os
rostos das duas mulheres. Era um objeto em prata. Mostrava uma árvore sob a
qual descansavam três gamos. A copa da árvore abria-se para um recipiente onde
haviam sido colocadas rosas vermelhas. O efeito era de suntuosidade. Desde
aquele dia, Shantelle passou a detestar rosas vermelhas.
— Mesmo assim, você me esperou
aquela noite em meu apartamento... — Luís sussurrou.
— Eu não queria acreditar que você
estava me usando. Tinha esperança de que você fosse me contar sobre Cláudia e
que dissesse que não se casaria com ela apesar da vontade de sua mãe.
— Por que não falou a esse respeito
comigo? — Luís perguntou, como se estivesse muito cansado.
Porque seria humilhante demais, caso
fosse verdade e ele pretendesse se casar e continuar tendo-a apenas como
amante. Porque ela não tinha coragem de encarar essa possibilidade. Porque
continuava amando-o, apesar de tudo. Mas depois, houve aquele horrível
telefonema.
— Sua mãe ligou aquela noite. Ela me
avisou que telefonaria para você às oito horas. E ela ligou, você se lembra?
— Sim.
— E fez um convite para almoçarmos
com ela no domingo. Um convite que me incluía.
— Não! — Luís negou com veemência.
— Não adianta mentir, Luís. Eu ouvi
a desculpa que você deu.
— Ela queria que eu acompanhasse
Cláudia a uma festa — Luís protestou, impaciente. — Ela não se referiu a você.
— De repente, Luís deu uma risada sarcástica. — Ao menos foi o que me pareceu
na ocasião. Eu nem sequer desconfiei da manobra que ela arquitetou. Senti-me
aliviado com o telefonema porque significava que você estava segura. Como
poderia saber? Madre de Dios!
Shantelle
pestanejou. Não imaginara que a mãe de Luís lhe despertasse tanto medo. Até que
ponto ela governava a vida do filho?
— Minha mãe combinou aquele
telefonema com você como uma espécie de teste?
Shantelle fez um movimento
afirmativo com a cabeça.
— Pensei que fosse um acordo de
mulher para mulher. Que ela quisesse me alertar sobre minha posição em sua
vida.
— Então, quando eu me recusei a
acompanhar Cláudia, você deduziu que eu estava me furtando a levá-la à casa de
minha família. Foi isso?
— Sim — Shantelle admitiu.
— E sua paixão por mim acabou
naquela noite.
Quando se deitaram, ela quis que
fosse uma despedida. Mas viu-se impossibilitada de corresponder às carícias de
Luís. Não conseguia afastar a imagem de Cláudia de sua mente. Não conseguia
encarar a realidade de ter sido apenas uma aventura para Luís.
— Eu me senti usada — Shantelle
murmurou.
— E com sua atitude, fez com que eu
me sentisse usado.
— Acho que sim.
— Para você, teria de ser casamento
ou nada.
Ele não tinha o direito de chegar a
uma conclusão como aquela. Ela havia se entregado a ele sem reservas, sem
promessas.
— Nós nunca chegamos a discutir
isso.
— Não. Eu sabia que minha mãe não a
aceitaria porque tinha outros planos para mim.
— É claro. Você estava com seu
futuro traçado. Eu não fazia parte.
—Você deveria ter me contado. Em vez
disso, preferiu confiar em outras pessoas. Decidiu sozinha que eu iria me casar
com Cláudia e que era para mim apenas uma amante secreta.
— O que esperava que eu fizesse? Que
me sentisse feliz por você estar praticamente noivo de outra?
— Cláudia Gallardo nunca será minha
esposa. Vejo agora o quanto ela é parecida com minha mãe. Não serei uma
marionete em suas mãos. Não cairei na teia que ela e minha mãe teceram.
Shantelle refugiou-se no silêncio.
Entendia agora por que as pessoas costumavam dizer que o poder corrompe. Luís
acusou-a de falta de confiança, mas como alguém podia confiar no mundo em que
Luís vivia, se sua própria mãe conspirava as suas costas?
Alan estava certo. Sua relação com
Luís estava fadada ao fracasso desde o início. Não era sempre que o amor resolvia
tudo. Não quando havia dinheiro e poder em jogo.
CAPÍTULO XI
Luís fechou
os olhos. Sua vida parecia estar terminando e ele via os episódios de seu passado
desfilando em sua mente como um filme. Não via nenhuma saída. Sua chance de
sobrevivência havia sido destruída por ele mesmo na noite anterior.
De nada
adiantava entregar-se à raiva. O que estava feito, não podia ser desfeito. Ele
havia perdido para sempre a única mulher que lhe dera amor, alegria e prazer.
Não podia culpá-la. Shantelle fora uma vítima. Em sua inocência, deixara-se
manipular pelas forças que governavam o mundo em que ele vivia. E das quais
tentara se libertar... em vão. Tolo!
Ele poderia
tê-la reconquistado na noite anterior. Em vez disso, distanciara-se ainda mais.
Shantelle estava agora fora de seu alcance. E por que não? Ela se revestira de
uma couraça de proteção para não sofrer mais.
Alan era
outra vítima. Agira terrivelmente mal com o melhor amigo que já tivera. E as
culpadas pelo infortúnio de três pessoas estavam se preparando para colher os
frutos de seu veneno. Naquela noite, se ele não tivesse ficado detido em La
Paz, Cláudia estaria ostentando um anel de noivado em sua mão direita e sua mãe
estaria se parabenizando por sua vitória suja.
O destino
tinha armas surpreendentes, Luís pensou. Se não fosse pela situação política em
La Paz e pela necessidade de Alan de tirar seus clientes da cidade em um
ônibus, ele agora seria o responsável pela união
das fortunas dos Gallardo e dos Martinez. Em troca, teria sacrificado o único
grande amor de sua vida.
Não. Não havia justificativa para
isso. Jamais poderia perdoar sua mãe.
Tudo que Shantelle lhe dissera na
noite anterior, agora fazia sentido. Se não estivesse tão cego pela amargura,
teria notado as repetidas referências a casamento.
Mas a mágoa fora profunda demais. As
cicatrizes deixadas há dois anos não permitiram reflexões. Mas por terem sido
reabertas, Luís faria as responsáveis pagarem.
A linda e submissa Cláudia que lhe
oferecera conforto ao mesmo tempo que escondia um coração maquiavélico, podia
dar adeus a suas ambições de tê-lo como marido. Cada vez que pensava em sua voz
angelical desferindo golpes impiedosos em Shantelle à mesa de almoço, ele
sentia o sangue ferver nas veias.
Esqueça o que passou, uma voz
tentava lhe dizer. Só Deus podia julgar. A vida não fora fácil para sua mãe...
Ela havia mudado com o
desaparecimento de Eduardo. Nem sequer a morte de seu marido, cinco anos antes,
havia causado tanto sofrimento.
Fora a partir dessa situação que ela
se tornara uma mulher que queria deter o poder acima de tudo. Amar significava
fraquejar. Ela não se permitiria mais nenhuma vulnerabilidade. Nem que para
isso, tivesse de esquecer o amor. Ao menos não haveria riscos de perdas.
Sua nova filosofia não foi traduzida
em palavras, mas em ação. Com a perda de Eduardo, Luís, seu segundo filho,
teria de assumir as empresas da família. E ela o teria sempre por perto.
Luís entendia as necessidades de sua
mãe e os motivos que a levavam a agir como uma déspota, mas ser a responsável
pelo sofrimento de três pessoas, com mentiras, era demais.
Ela precisava ser detida. A qualquer
preço.
Seria melhor, é claro, se ele
conseguisse convencê-la por bem de seu erro. Quando a fizesse entender que fora
longe demais e que suas manobras o deixaram infeliz por dois anos, talvez ela
se arrependesse. Precisava tentar esse caminho em primeiro lugar. Apesar de
tudo, ele não queria excluir a mãe de sua vida. Apenas queria que aprendesse a
não interferir suas decisões e que encarasse as conseqüências de seus atos.
Como?
Ele sabia a resposta. Sabia o que
queria fazer. Sabia também que Shantelle não concordaria. Mas a idéia não lhe
saía da cabeça. Seria uma questão de justiça. Algo que ninguém poderia impedir.
Seria um ato público decorrente da escolha de sua própria mãe.
Mas seria necessária a colaboração
de Shantelle. Precisava fazê-la entender que seria um ato de justiça, embora
tivesse quase certeza de que ela não aceitaria participar de seu plano.
Precisava tentar, de qualquer
maneira.
Sua felicidade e de Shantelle
dependeria disso. Em vez de continuar a vê-lo como o homem que lhe causara
mágoa, queria que começasse a encará-lo como o homem que havia decidido se
libertar para dedicar-se a ela.
CAPÍTULO XII
Chegaram a
Caracollo, a primeira parada. Por terem conseguido cumprir o trajeto sem surgir
nenhum outro imprevisto, todos estavam bem-humorados.
— O descanso será de vinte minutos —
Alan estipulou. — Não se afastem. Aproveitem a loja de conveniências do posto e
o restaurante e voltem para o ônibus. Shantelle e eu providenciaremos água,
refrigerantes, café e bolo para vocês.
Os turistas
saltaram. Shantelle tentou se afastar de Luís. Mas antes que ela pudesse seguir
para o restaurante com o irmão, Luís se ofereceu para ajudá-los a carregar o
lanche.
Evitou
fitá-lo. Estava zangada demais com ele para continuar em sua companhia. Já
bastava terem ocupado o mesmo banco durante o primeiro trecho da viagem.
Sua frieza
deveria ter sido finalmente notada. Ele tirou o celular que trazia preso ao
cinto e se afastou para fazer suas ligações em particular.
— Você está bem? — Alan perguntou.
— Sim — ela respondeu.
— Eu estava enganado sobre Luís.
Deveria ter imaginado que ele não seria capaz de fazer o que pensei.
— Não se preocupe. Todos nós nos
enganamos na vida.
— Vocês já conversaram?
— Já.
— E?
— Nada. Não há o que fazer.
Alan
obviamente não gostou da resposta. Queria pedir explicações
a Shantelle, mas as pessoas estavam voltando para o ônibus. Não havia tempo a
perder.
Cochabamba foi a parada seguinte. Depois,
seguiram por longas horas pelas planícies até Santa Cruz. A meta era chegarem
ao anoitecer.
Alan havia conseguido reservar
acomodações em um hotel para o pernoite e lugares no primeiro vôo para Buenos
Aires. Se tudo desse certo, estariam no aeroporto a tempo para a conexão
prevista para o retorno à Austrália.
Se tudo desse certo... se não
surgisse nenhum imprevisto, o que era comum na América do Sul.
Fortes chuvas costumavam bloquear as
estradas e o trânsito demorava horas para voltar ao normal. Vôos eram cancelados
ou adiados sem notas de desculpas ou explicações por parte das companhias
aéreas. Em La Paz, não havia acontecido até mesmo um levante político?
Por outro lado, o continente era
mágico. Seus tesouros eram incríveis e incalculáveis: o vale da Lua, a herança
dos incas, o esoterismo da cidade abandonada de Machu Pichu, o espetáculo das
Cataratas do Iguaçu, a esplêndida Amazônia, o Rio de Janeiro com o Pão de
Açúcar e a majestosa imagem de Cristo Redentor no Corcovado, Buenos Aires...
que abrigava a família Martinez.
Shantelle suspirou.
Apesar dos obstáculos e
desconfortos, uma viagem sempre valia a pena. E foi essa a idéia brilhante que
Shantelle teve para ser obrigada a suportar a presença de Luís a seu lado.
Sugeriu ao irmão que a deixasse
fazer uso do microfone para distrair os passageiros por algum tempo,
enaltecendo as paisagens daquele continente que mereciam outras visitas. Ele a
surpreendeu, oferecendo-se para a tarefa.
— Combinei com Luís que ele
assumiria o volante até Cochabamba. Dessa forma, nenhum de nós ficará cansado e
não comprometeremos a segurança de nossos clientes e também a nossa.
Shantelle franziu o rosto. Então, o
próprio Luís quisera se afastar.
Melhor assim, pensou. Recostou-se no
banco, certa de que conseguiria relaxar. Em vez disso, viu-se olhando o tempo
todo para a cabeça de Luís, como se quisesse ler seus pensamentos.
A tensão, em vez de diminuir,
deixou-a angustiada.
As palavras que Luís lhe dissera
ecoavam em seus ouvidos sem cessar. Ele a acusara de falta de confiança. A
verdade, nua e crua, era que ela não havia acreditado o suficiente no amor de
Luís. Ela havia preferido confiar na mãe dele e em sua pretensa futura noiva.
Confiara em duas desconhecidas em vez de confiar no homem que conhecia e que
amava. Luís estava certo. Ela não devia tê-lo abandonado sem discutirem a
situação.
Com seu gesto, partira dois corações
e não havia cura possível.
Pararam para almoçar em Cochabamba.
Luís tornou a se afastar para fazer ligações em seu celular. Deveria estar
cuidando de seus negócios, Shantelle pensou enquanto conduzia junto com o irmão
os excursionistas para o restaurante onde o almoço tipo bufê possibilitaria uma
refeição rápida e farta.
O trajeto seguinte os levou para
Villa Tunari. Antes que partissem, Shantelle ofereceu-se outra vez para
distrair os passageiros, ansiosa para se livrar de Luís, que agora cederia o
volante para Alan.
— Não acho uma boa idéia — Alan
dispensou-a. — Eles acabaram de comer. Devem estar querendo tirar um cochilo.
Perturbada com a proximidade de
Luís, Shantelle encolheu-se junto à janela. E estava pensando em fechar os
olhos e fingir que dormia para evitar o silêncio pesado que certamente
aconteceria, quando Luís a surpreendeu com um pedido de desculpa.
— Você seria capaz de me perdoar pelo
meu comportamento de ontem à noite?
Foi mais o tom de voz do que a
pergunta que fez o coração de Shantelle bater mais forte. Olhou para os olhos
de Luís. Não havia sarcasmo, nem emoção. Ela não conseguia enxergar nada a não
ser seriedade.
— Ambos nos comportamos de maneira
lamentável — ela murmurou. — Eu também sinto muito pela dor que lhe causei.
— Mas sentir apenas não basta, não
é?
Shantelle fez um gesto negativo com
a cabeça.
— Não, não basta. Há outros fatores
envolvidos.
— Sim — ele concordou e tornou a
surpreendê-la: — Minha mãe dará uma grande recepção esta noite. A lista de
convidados inclui os nomes mais proeminentes da Argentina. A família Gallardo
estará lá.
Shantelle apertou os lábios.
Preferia que Luís não tornasse a mencionar as pessoas que faziam parte de seu
mundo.
— Eu me sentiria muito honrado — ele
continuou —, se você aceitasse me acompanhar à festa, Shantelle.
O choque lhe provocou um arrepio.
Luís não podia estar falando sério. Ou ela estava sonhando ou Luís havia
perdido o juízo.
— Por quê?
Ele deu um pequeno sorriso.
— Para reparar, talvez, ao menos em
parte, o mal que lhe causei.
— Como minha presença em uma festa
oferecida por sua mãe poderia remediar os males?
— Há dois anos, eu não fui forte o
bastante para lutar por você. Não foi de propósito, mas eu cometi um erro
grave. Gostaria de tentar corrigi-lo. Eu teria muito orgulho em apresentá-la a
minha mãe e a toda Argentina.
Shantelle respirou fundo.
— É tarde demais, Luís.
— Nunca é tarde demais para se dar o
devido respeito. Para redimir a autoestima e o orgulho ferido. Farei isso esta
noite, se você permitir.
— Não importa mais. Essa gente não
faz parte de minha vida. Nunca fará.
— Não importa que elas tenham
mentido a você? — Luís protestou. — Que elas tenham mentido sobre mim e feito
você pensar que não significava nada em minha vida? Pode esquecer e perdoar
isso, Shantelle? Ou a ferida nunca parará de sangrar em seu coração?
— Foi há muito tempo, Luís.
— Não — ele insistiu. — O passado se
estendeu ao presente. Ele está dentro de nós. Sempre estará. Por favor. Eu
imploro que me deixe fazer justiça.
Shantelle sentiu-se abalar pela
avalanche dos sentimentos que ainda sentia por Luís. Mas ele estava querendo
arrastá-la para uma vingança. Para quê? Nada do que ele fizesse ou dissesse lhe
devolveria o que lhe fora roubado.
Por outro lado, se fosse sincera
consigo mesma, admitiria que a idéia era atraente. Elvira Rosa Martinez teria
sua grandiosa recepção acabada se Luís a apresentasse aos convidados como sua
companheira, sob os narizes arrogantes de sua mãe e de Cláudia Gallardo.
O preço para isso seria alto demais.
Ela teria de ficar ainda mais tempo ao lado de Luís, revivendo o passado
doloroso. Ele acabaria tocando-a, conduzindo-a pelo braço por entre os convidados.
Estaria fingindo que era real, quando ambos sabiam que era apenas uma farsa em
busca de um acerto de contas.
Não. Não podia concordar com aquele
plano.
De qualquer forma, como ele esperava
chegar à festa?
— Você esqueceu que estamos na
Bolívia? E que será muita sorte se conseguirmos chegar a Santa Cruz esta noite?
— Haverá um avião particular a nossa
espera para nos levar a Buenos Aires.
— Você contratou um? — Shantelle
perguntou, espantada.
— Sim, tomei todas as providências
nesse sentido. Espero que você aceite me acompanhar.
Shantelle pensou nas ligações pelo
celular. Quando a idéia teria surgido? Antes ou depois de Caracollo?
— Por favor, Shantelle...
— O que espera realmente conseguir
levando-me para essa recepção?
— Você permitiu que elas fizessem de
mim o que quiseram. Mas se você se deixar ver a meu lado, elas saberão que não
sou um fantoche.
— Você quer fazer com elas, em suma,
o que fez comigo ontem à noite? — Shantelle perguntou, tensa.
— Não. Aquilo não foi justiça. Foi
vingança. Um ato de que me envergonharei pelo resto de meus dias. Mas não
existe vergonha em procurar a justiça, Shantelle. Eu não teria paz se não a
perseguisse.
Ele estava certo em parte. Elvira
Rosa Martinez e Cláudia Gallardo não deviam ficar impunes. O que elas fizeram
fora um crime. Um crime premeditado contra o amor.
Luís não estava pedindo muito. Seria
apenas mais uma noite. Em nome do orgulho. Dele e dela. Mas ainda havia outro
problema: a roupa.
— Não tenho nenhum vestido adequado,
Luís. Se eu me apresentar do jeito que costumo me vestir, o vexame será total.
— Eu cuidarei disso. Mandarei
entregarem uma seleção de vestidos e de acessórios em meu apartamento para você
escolher. Será a mais elegante da festa, eu garanto.
Dinheiro. Shantelle ordenou-se a não
esquecer esse detalhe. Aquele não era seu mundo. Ela não era como Luís que
podia conseguir tudo o que queria com um estalar de dedos. Ou com um
telefonema.
— Acha que valerá a pena? —
Shantelle insistiu. — Mesmo que não surgir nenhum imprevisto e que estejamos
em Santa Cruz às sete horas, o vôo para Buenos Aires será de três horas.
Acrescente o trajeto até seu apartamento e o tempo necessário para nos
vestirmos. Duvido que conseguiremos nos apresentar antes da meia-noite.
— Sim, valerá a pena. Meia-noite
será um horário perfeito. Todos já terão chegado e ninguém terá saído. É considerado
falta de cortesia aos anfitriões a despedida antes das três horas. — Luís deu
uma piscada. — Faremos uma entrada triunfal.
O entusiasmo de Luís acabou
contagiando-a. Por que não?
— Pretende se basear no conto de
fadas e transformar a pobre Gata Borralheira em uma princesa? — Shantelle
caçoou.
— Você nunca foi uma gata
borralheira para mim. Jamais repita isso. Não se menospreze. Sei que é errado
odiar a própria mãe, mas eu odeio o que ela fez conosco.
O tormento que Shantelle viu nos
olhos de Luís comoveu-a mais do que todas as explicações e justificativas que
ele dera. Shantelle pensou em sua própria mãe e no amor com que ela sempre a
tratara, ajudando-a e confortando-a, sem nunca pedir nada em troca. Apesar de
todo seu dinheiro, Luís não era tão feliz quanto ela.
As confidências que Luís lhe fizera
no tempo em que eram íntimos voltaram-lhe à mente. Ele nunca criticou a mãe
abertamente pela maneira que o obrigara a assumir o lugar de Eduardo e suas
responsabilidades, mas a insatisfação era evidente. Uma vez, Luís chegou a
afirmar que invejava Alan por sua liberdade de escolha.
— Preciso partir as correntes que me
ataram por todos esses anos — Luís murmurou e apertou-lhe as mãos. —
Acompanhe-me à festa, Shantelle. Você não perderá seu vôo para a Austrália
amanhã de manhã. Mas esta noite será nossa. Será nossa união final contra a
injustiça.
Shantelle concordou com um gesto de
cabeça.
Estavam de mãos dadas, mas o elo era
muito mais do que físico. Uma forte corrente fluía entre eles, energizando-os.
De repente, nada mais importava.
Se Luís quisesse segurar suas mãos
pelo resto de sua vida, ela deixaria.
CAPÍTULO XIII
— O vermelho
— Luís sugeriu.
— Tem
certeza? — Shantelle perguntou, mais inclinada a ficar com o modelo preto de
renda.
Ela estava
fascinada com as roupas que Luís mandara buscar em uma das melhores butiques de
Buenos Aires. Estava emocionada. Não apenas com as atenções de que ele a
cobrira, mas principalmente por estarem no quarto que haviam dividido nos dias
mais felizes de sua vida.
O prospecto
de voltar à mansão dos Martinez contribuía para sua agitação, apesar da
promessa de Luís de que não a deixaria sozinha nem sequer por um instante.
— É meu predileto. Além disso, não
será uma festa como outra qualquer. Não será uma questão de pararmos de grupo
em grupo e conversarmos com amigos.
— O que acha daquele vestido
dourado? — Ela voltou ao assunto que mais a estava preocupando naquele momento.
— Use o vermelho — Luís pediu.
— O decote nas costas é pronunciado
demais — Shantelle observou. — Chega à cintura.
— Você tem costas lindas.
A voz
sedutora lhe causou arrepios. O coração bateu mais depressa. Ela sabia que Luís
ainda a desejava. A noite anterior fora uma prova. Mesmo quando pensava que a
detestava, Luís não conseguia evitar a atração que os impulsionava um para os
braços do outro.
— Isso não significa que eu deva
expô-las — retrucou.
Estava apreensiva. A vingança
poderia surtir um efeito contrário. Afinal, a intimidade se aprofundaria com o
decorrer da noite. Eles ficariam juntos. Teriam de se abraçar se dançassem.
E se o desejo os levasse novamente
para a cama? O que Luís faria depois? Pediria que ficasse ou simplesmente a
acompanharia ao aeroporto para que se reunisse a Alan e ao grupo de
excursionistas e diria adeus?
— Seus cabelos esconderão quase a
metade — Luís alegou.
— Pensei em prendê-los. Seria mais
sofisticado.
— Não. Deixe-os soltos e use o
vestido vermelho. E agora vou deixá-la para que possa se arrumar.
Ela o ouviu respirar fundo antes de
sair e fechar a porta para se acomodar no quarto ao lado. Estava se portando
como um cavalheiro. Não a pressionara. Pedira uma noite em nome da justiça. No
fundo, porém, ela esperava que fosse mais do que isso. Teria o direito de sonhar?
Céus! Já não bastava o sonho que
acalentara na noite anterior? Precisaria estar fora de seu juízo para se expor
outra vez. O melhor que tinha a fazer era parar com as conjeturas e se arrumar
como Luís havia pedido. Não havia tempo a perder.
Tomou um banho rápido e estava se
maquilando quando a imagem dele tornou a invadir seus pensamentos. Exceto pelo
toque em suas mãos, Luís não havia demonstrado nenhum interesse sexual com
relação àquela noite.
Negócios inacabados, fora a
explicação que dera a Alan quando pediu que seu irmão os deixasse no aeroporto
de Santa Cruz antes de levar o grupo para o hotel.
— É o que você quer, Shantelle? —
Alan quis ouvir a resposta da própria irmã. E ao ter a resposta, dirigiu-se aos
clientes e contou sobre o imenso favor que Luís lhes fizera ao emprestar o
ônibus, e que eles tentariam retribuir esse favor ajudando-o a chegar a tempo a
um evento importante em Buenos Aires.
Ninguém protestou.
No momento que o ônibus parou, um
homem foi ao encontro de Luís para escoltá-lo ao avião das Empresas Martinez.
Ele entregou a Luís uma pasta, provavelmente contendo documentos, e depois
cuidou da bagagem de Shantelle.
O pessoal acenou para eles do
ônibus, aliviados porque o pesadelo havia chegado ao fim. Alan despediu-se e
lhes desejou sorte.
O avião levantou vôo sem demora e
logo que atingiram uma altitude segura, um comissário serviu o jantar.
Shantelle estava tão cansada que mal
tocou na refeição. Luís sugeriu que ela aproveitasse para dormir um pouco
enquanto ele dava uma olhada na pasta que lhe havia sido entregue.
Shantelle dormiu durante quase todo
o vôo. Além das dificuldades enfrentadas naquele dia, passara a noite anterior
praticamente aos prantos.
Luís acordou-a quando a tripulação
avisou para se prepararem para a aterrissagem. Ela pestanejou, mas logo
recuperou os sentidos. Todos. A presença de Luís, barbeado e perfumado, sempre
a deixava alerta.
Quase não resistiu ao impulso de
tocar e de acariciar aquele rosto. Sua mão estava a caminho quando desistiu e
afastou uma mecha de seus cabelos que havia lhe caído sobre a testa.
Aquilo não deveria estar
acontecendo. Era uma tolice continuar desejando aquele homem.
O percurso do aeroporto até o
apartamento de Luís deixara-a com a respiração suspensa. Não conversaram.
Estavam em um dos carros das
Empresas Martinez, um Mercedes prata com bancos estofados de veludo.
Desde que concordara em acompanhar
Luís à festa, ele a cercara de luxo. Não podia se deixar enganar. Seria apenas
mais uma noite.
A última!
Shantelle realçou os olhos com uma
leve camada de sombra marrom e deu brilho à pele com algumas pinceladas de pó
e de blush. Os lábios receberam os traços feitos por um lápis apropriado e
foram preenchidos por um batom vermelho, do tom exato ao do vestido.
Shantelle
receou, de repente, que a imagem que as pessoas teriam dela seria a de uma
mulher fatal. Mas preferiu confiar em Luís dessa vez. Escovou os cabelos com
renovada energia. Eles estavam sedosos e brilhantes, caindo em ondas sobre os
ombros desnudos.
Satisfeita com o resultado, enrolou-se
em uma toalha e encaminhou-se para o quarto. Luís não estava lá. Não queria
fazê-lo esperar. Vestiu-se o mais depressa que pôde.
O vestido era deslumbrante. O tecido
era macio e entremeado com fios prateados. O corte era oriental e seu caimento
era perfeito. Justo. Na altura dos joelhos, abria-se para facilitar seus
movimentos.
As alças eram finas e prateadas. O
decote deixava parte dos seios à mostra. Shantelle sentiu-se constrangida por
um momento, mas quando colocou o colar de várias voltas, o efeito foi
espetacular. Estava sexy, mas também elegante e clássica.
Sandálias prateadas de salto alto e
uma bolsa pequena também prateada completavam o conjunto.
Ficou alguns instantes parada diante
do espelho, perplexa com a transformação realizada pelo poder do dinheiro.
Faltava apenas guardar o batom, o
pente, dois lenços de papel e alguns trocados na bolsa, para qualquer
eventualidade.
Faltavam dezessete minutos para
meia-noite no relógio sobre a mesa-de-cabeceira. Se Luís estivesse pronto, seu
cálculo teria sido acurado. A meia-noite eles estariam entrando na mansão de
sua família.
Encontrou-o a sua espera no meio da
sala, com um copo na mão. O impacto da visão a fez parar. Ele estava lindo de
smoking. Alto, moreno e sofisticado. Poderia haver homem mais perfeito?
Poderia permitir que aquele homem se afastasse de sua vida? Ele era o único que
queria. E que não podia ter...
— O sol, a lua e as estrelas...
A voz rouca de Luís provocou-lhe um
arrepio. Ele deveria ter falado algo antes, mas ela não conseguira ouvi-lo,
pois estivera perdida em divagações.
Os olhos de Luís pareciam os mesmos
de antes, quando ele a fitava com paixão e com ternura. Ela se deixou embalar
pela saudade e pela esperança por um momento. Mas então ele sorriu e havia
cinismo outra vez em sua expressão.
— Você causará inveja em todas as
mulheres presentes na festa. Como tinha de ser.
— Quero que se orgulhe de mim, Luís.
Ela se arrependeu do que disse. Luís
estava interessado apenas em se vingar da mãe e de Cláudia Gallardo. A impressão
que ela causaria nos membros de seu círculo social não importava. Ela, contudo,
não queria ser reprovada no que considerava um teste. Queria ser aceita no
mundo de Luís ao menos uma vez.
— Espero que não esteja se sentindo
desconfortável. — Luís ficou sério de repente. — Talvez eu não devesse tê-la
pressionado a usar algo que não era de seu gosto.
— Eu gostei do vestido — Shantelle
apressou-se a declarar.
A preocupação transformou-se em um
sorriso de prazer.
— Ainda bem. Em minha opinião, você
está perfeita. Serei olhado com inveja por todos os homens presentes.
Ainda sorridente, Luís colocou o
copo sobre a mesa e se dirigiu à porta, que abriu com uma mesura.
— Vamos, Cinderela. Está na hora de
irmos para o baile.
Um riso nervoso brotou dos lábios de
Shantelle à medida que ela forçava suas pernas a caminharem. Elvira Rosa
Martinez não era exatamente sua madrasta e Cláudia Gallardo não era sua
meio-irmã malvada, mas ela mal podia esperar para ver suas caras quando
percebessem quem estava de braços com o príncipe aquela noite.
O Mercedes prateado estava à espera
deles. Luís lhe abriu a porta e aguardou que se acomodasse antes de dar a volta
e ocupar o lugar ao lado dela.
Estavam prontos para o desfecho da
peça. Mais alguns minutos e subiriam ao palco, Shantelle pensou. Estava ansiosa
por ver como as pessoas reagiriam à chegada de Luís, herdeiro de uma das
maiores, senão a maior fortuna da Argentina, que estava prometido à herdeira de
outra grande fortuna.
— Você não me falou sobre a família
Gallardo — Shantelle lembrou. — Isso não prejudicará seus negócios com eles?
— Nada importa, Shantelle, exceto
nós dois.
A rispidez que Shantelle detectou na
resposta a fez franzir o rosto. Tentou estudar o perfil de Luís, mas ele
parecia estar usando uma máscara. Sua aparência era calma, mas não se deixou
enganar.
— Não tema por mim, Shantelle — Luís
assegurou. — O que quer que aconteça esta noite, quero que pensem em mim como
dono de minhas próprias vontades e não como um joguete nas mãos de minha mãe.
— Eu estranho esse seu lado. Você
nunca o mostrou para mim.
— Eu queria que você me conhecesse
apenas como homem, não como empresário.
— Não creio que os dois possam ser
separados.
— Eu estava errado. Você fez com que
eu descobrisse isso. Sou-lhe grato, Shantelle. Um homem não pode viver a vida
de outro. Ele precisa ser verdadeiro consigo mesmo.
Shantelle percebeu que não se
tratava apenas de uma questão de justiça para Luís. Aquela noite significaria
sua libertação. E ela era o pivô de tudo.
Uma onda de pânico invadiu-a naquele
instante. Mas logo recuperou o controle. Não era por causa dela apenas. Era por
ele próprio. Luís não estava feliz. Não deveria se sentir feliz havia anos. O
breve interlúdio amoroso de dois anos antes fora um simples parêntese em sua
vida onde só existia lugar para responsabilidades.
O que teria representado realmente
para ele? Uma espécie de tábua de salvação, uma válvula de escape no meio
repressor onde nascera, um refúgio para seu cansaço e inconformismo?
Ela não conhecia Luís por inteiro.
Amara-o à primeira vista. Ainda o amava. Movida por um impulso irrefreável,
apertou-lhe o braço.
— Estou com você esta noite, Luís.
Estarei a seu lado para o que der e vier.
Antes que ela tivesse tempo para
afastar a mão, ele a prendeu, transmitindo-lhe uma energia que vibrou por todo
seu corpo.
— É uma promessa?
— Sim.
— Então é verdade que o sol, a lua e
as estrelas estão brilhando para mim.
Ele a surpreendeu com um riso
espontâneo e depois com o beijo que deu em sua mão.
— Eu agradeço, mas não tenho o
direito de lhe cobrar nada. Sinta-se livre para mudar de idéia, se achar
necessário.
A resposta de Luís a fez curvar os
ombros como se um peso tivesse sido colocado sobre eles. Fora uma tola em se
deixar embalar novamente por uma tênue esperança. Luís não queria que ela se
sentisse presa a ele. A parceria valia apenas para o propósito comum de
cobrarem uma dívida. Ele não poderia ter sido mais claro.
O motorista diminuiu a marcha à
medida que se aproximavam dos altos portões de ferro que protegiam a mansão
dos Martinez.
Shantelle
sentiu o ar lhe faltar.
A construção greco-romana com suas
colunas e elaboradas cornijas estava toda iluminada, desde os magníficos
jardins. Os acordes musicais invadiam a noite pelos terraços abertos. A
recepção deveria estar no auge.
O Mercedes parou diante do lance de
escada que levava à porta principal. Era tão imponente que parecia conduzir à
sala de uma rainha. Restava saber se a rainha Elvira Rosa Martinez continuava
colocando seus interesses acima da felicidade do filho.
O motorista abriu a porta. Shantelle
ajeitou o vestido para poder sair.
Estava tremendo. Lembrou-se que
vermelho significava perigo.
Mas era tarde demais para recuar.
Dera sua palavra.
Luís segurou-lhe a mão e a fez
apoiá-la na curva de seu braço em uma atitude possessiva.
— Está pronta? — perguntou.
— Sim — respondeu, com a respiração
suspensa. Subiram os degraus de braço dado.
Em algum lugar, perto dali, um
relógio bateu as doze badaladas.
CAPÍTULO XIV
— Señor Martinez! — A surpresa no rosto do
mordomo fez par com a surpresa contida em sua voz. — Não o esperávamos — ele
balbuciou ao mesmo tempo que olhava, confuso, para Shantelle, que, sem dúvida,
era menos esperada ainda.
— Tive sorte e consegui escapar de
La Paz — Luís explicou.
— Sua mãe ficará... — Ele se deteve.
Teria dito contente ou radiante em outras circunstâncias. Mas não sabia o que
pensar com relação à jovem a sua frente.
— Quero lhe apresentar minha
acompanhante, srta. Shantelle Wright. Shantelle, este é...
— Carlos — ela interrompeu-o. — Nós
já nos conhecemos. O senhor serviu-me um almoço dois anos atrás, lembra-se?
— Sí, srta. Wright — Shantelle respondeu, constrangido. — Queiram me
desculpar. Devo anunciar sua presença.
Luís o
impediu.
— Não, Carlos. Quero fazer uma
surpresa a minha mãe.
— Mas...
— Finja que não me viu, está bem?
Não será responsabilizado por nada.
— Sí, señor.
O mordomo se
afastou e Luís conduziu Shantelle pela galeria que terminava no salão de baile.
Os quadros com molduras douradas e os objetos de arte que tanto chamaram a
atenção de Shantelle no passado, agora quase lhe passaram despercebidos, tanta
era sua apreensão.
Os dois subiram outro lance de
degraus. A música ficava cada vez mais alta. Estavam tocando um tango.
— Lembra-se dos tangos que dançamos
juntos? — Luís perguntou.
Ela fitou-o, corada. Como poderia
ter esquecido? Luís lhe ensinara os movimentos daquela dança sensual, em
particular. E quando ela terminara, fizeram amor apaixonadamente.
Os olhares se travaram. Shantelle
percebeu que Luís estava pensando o mesmo que ela.
— Como poderia esquecer? — Shantelle
respondeu com um fio de voz.
— Poesia e fogo.
Shantelle assentiu com um gesto de
cabeça. O histórico da dança falava em tragédia, em amores mal-sucedidos.
— Você dançaria um tango comigo esta
noite? — ele perguntou.
O fôlego quase faltou a Shantelle.
Para ela, o tango estava associado ao desejo. Seria prudente desafiar o destino
quando não havia futuro com Luís?
— Sim, mas você não acha que o
momento não é apropriado?
— O momento não poderia ser mais
apropriado para a poesia e para o fogo — Luís respondeu.
O Inferno de Dante assaltou a mente
de Shantelle. Estava receosa. Luís parecia decidido a enfrentar sua mãe a qualquer
preço.
Uma vez ele havia chamado aquela
mansão de mausoléu, mas ao menos naquela noite, a casa não poderia estar mais
cheia de vida.
Quando entraram no salão, foram
imediatamente notados por vários grupos. As conversas pararam. As cabeças se
voltaram para a porta. Shantelle sabia que era ela o alvo da curiosidade geral.
Os burburinhos começaram.
Um homem se destacou entre os
convidados e veio em direção a eles. Era Patrício, o irmão caçula de Luís.
— Dios! — ele exclamou. — Por que não nos avisou que viria, Luís?
Patrício se posicionou de forma a
impedir que o irmão prosseguisse em seu trajeto. Era mais baixo e mais magro do
que Luís, mas exalava uma força que o tornaria um adversário de respeito, se
ele assim quisesse.
Ele usava bigode, o que lhe dava um
certo ar de descaso. Mas Shantelle sabia o suficiente sobre Patrício para não
se deixar enganar. Ele era um brilhante homem de negócios. Administrava as
empresas da família, no âmbito da agricultura, com eficiência.
— Afaste-se, Patrício — Luís
ordenou.
— Pensamos que você estivesse em La
Paz — o irmão murmurou, confuso.
— Saia de meu caminho — Luís
repetiu. — E, por favor, cumprimente Shantelle. Você a conhece.
— Shantelle? — Patrício pestanejou.
— Eu não a reconheci. Eu... não estou entendendo.
— Não precisa entender — Luís
dispensou-o.
— Você disse que qualquer membro da
família Wright seria considerado persona
non grata — Patrício lembrou.
— Cometi uma injustiça. Não foram
eles que me traíram.
— Este não é o momento, nem aqui é o
lugar para você consertar seu erro — Patrício declarou.
— Penso de outra maneira.
— Enlouqueceu? A família Gallardo em
peso está aqui. Você não pode se apresentar com outra mulher.
— Oh, sim, eu posso.
A determinação na voz de Luís deixou
o irmão perplexo.
— Não quero que se sinta ofendida,
Shantelle — Patrício continuou —, mas a situação é delicada. Minha mãe pretende
anunciar...
— Ela não fará isso — Luís
interrompeu-o. — Liguei de La Paz para avisar sobre a situação e disse que
marcaria uma outra data porque não estaria aqui hoje.
Patrício balançou a cabeça.
— Sua ausência não faria nenhuma
diferença, Luís. O comunicado será feito assim que a orquestra terminar essa
música.
— Eu deveria ter me lembrado de que
ela não hesita diante de nada quando deseja algo — Luís falou mais consigo
mesmo do que com o irmão.
No instante seguinte, ele estava
segurando Shantelle pelo braço e puxando-a.
— Não faça isso! — Patrício
implorou. — Será um escândalo.
— Ela não me deixou escolha.
— Deixe-me cuidar de Shantelle. Você
procura mamãe e fala com ela.
— Não — Luís recusou com firmeza. —
Ela precisa entender que não tem o direito de governar minha vida e que isso
acabou de uma vez por todas.
— Luís? O que está acontecendo? —
Shantelle indagou. — Você disse que sua mãe estaria oferecendo uma recepção,
mas parece que o evento encerra um motivo especial.
— O noivado de Luís com Cláudia Gallardo
está prestes a ser anunciado — Patrício contou.
— Não! — Luís protestou. — Não
permitirei que isso aconteça.
Shantelle sentiu o chão abrir sob
seus pés. Luís havia lhe escondido a razão da festa.
— Você sabia... Você me trouxe
aqui... Oh, meu Deus!
— Não fui eu que marquei a data com
Cláudia. Não pedi que ela fosse minha noiva.
— Mas deixou que elas pensassem que
estava disposto a participar do jogo — Patrício acusou.
— Houve um blefe — Luís retrucou. —
Quero minha vida de volta. Se o poder significa tanto para você, estou tirando
os sapatos de Eduardo e colocando-os em seus pés.
Patrício hesitou.
— Não quero isso para mim.
— Então não me pressione.
— Luís, isso está errado — Shantelle
interrompeu-os. — Você não me contou nada.
— Por que está tão preocupada? Por
acaso Cláudia pensou em seus sentimentos? Minha mãe nos respeitou? — Luís olhou
para Shantelle e para Patrício com decepção. — Você disse que me apoiaria. Será
que não posso contar com ninguém?
Os olhos de Luís a fitavam súplices,
abalando sua resistência. Afinal, ela fazia parte do esquema de traição que o
atingira no passado e a culpa ainda a corroía por dentro. Por outro lado, dois
erros não resultavam em um acerto e Luís não mencionara nenhum tipo de envolvimento
com Cláudia.
— Você repetiu o erro ao me esconder
um fato demasiado importante, Luís — Shantelle respondeu, incapaz de relevar o
acontecimento.
— A sede de justiça era mais
importante — ele declarou. A idéia de que Luís pudesse ter cortejado, beijado
Cláudia de repente foi demais para Shantelle.
— Vocês fizeram amor alguma vez?
— Nunca! Nunca senti o menor desejo
por ela — Luís garantiu. — Nunca houve nenhuma intimidade entre nós.
— Então, como seu noivado com ela
está prestes a ser anunciado?
— Porque eu acho que me casaria com
qualquer mulher que minha mãe escolhesse. Nunca mais me interessei por ninguém
depois que você me deixou.
Ele a estava acusando! Aquele,
afinal, era um caso de justiça ou de vingança?
— Luís, a orquestra parou de tocar —
Patrício observou.
— Shantelle, estou sozinho ou
estamos juntos? — Luís indagou com uma expressão nos olhos que tocou-a no fundo
da alma.
Naquele instante, Shantelle decidiu
desistir de compreender. Se significava tanto para Luís que ela o apoiasse,
mesmo que estivesse usando-a para conquistar sua liberdade, ela o apoiaria.
Assim, ao menos estaria expiando uma parte de sua culpa em tê-lo deixado sem
explicar seus motivos.
— Estou com você.
Ele deu um longo suspiro. Em seguida
a conduziu por entre a pequena multidão. As vozes abafadas eram um prenúncio
do escândalo que estava prestes a acontecer.
Luís e Shantelle terminaram de
percorrer a galeria e estavam se preparando para entrar no salão de baile
quando Patrício se colocou do outro lado de Shantelle de modo a completar a
escolta.
— É melhor você sumir de vista —
Luís avisou.
— Não.
— Esta briga é minha.
— Não sei exatamente o que está por
trás de sua atitude, Luís, mas se você está descalçando os sapatos de Eduardo,
preciso deixar claro a nossa mãe que não aceitarei que tente calçá-los em mim.
Eu também estou com você.
— Trata-se de um assunto pessoal.
— Três são mais fortes do que dois.
— Você tentou me deter há poucos
instantes.
— Não sabia o que estava fazendo.
Entraram no salão ao som de Don't Cry for Me, Argentina. Shantelle
sentiu todos os olhares se voltarem para ela. Ergueu a cabeça.
Do outro lado do salão, uma voz, que
Shantelle jamais esqueceria, e que pertencia à mulher mais rica e dominadora
que já conhecera, soou ao microfone.
— Meus amigos, obrigada por terem
vindo aqui esta noite. É um grande prazer recebê-los, para que se juntem a mim
na comemoração de um evento muito especial. Infelizmente, meu filho, Luís, não
pôde comparecer porque ficou detido em La Paz.
— Luís está aqui, madre — Patrício anunciou.
A cena que se seguiu fez lembrar a
separação das águas por Moisés. O mar de pessoas se abriu diante dos três de
forma que se formou um caminho na pista de dança até o palco onde se encontrava
Elvira Rosa Martinez.
Ela estava linda com um vestido
azul-royal, um colar de ouro, brincos e pulseiras, todos com o mesmo design. A
mão que segurava o microfone estava coberta de anéis. Mas o sorriso havia
desaparecido daquele rosto.
Luís não estava sozinho.
Ele não estava acompanhado apenas
pelo irmão caçula.
Ele estava com uma mulher que não
havia sido escolhida por ela.
Shantelle
não tinha meios de adivinhar se a anfitriã a reconhecera, mas a mensagem que
qualquer um naquele local poderia ler era que uma disputa de poder e de orgulho
estava acontecendo entre os membros daquela família.
CAPÍTULO XV
Um silêncio
pesado caiu sobre todos. O tempo pareceu parar na mansão dos Martinez. As
paredes espelhadas do salão de baile refletiam uma cena onde nada nem ninguém
se movia. No alto, os lustres de cristal brilhavam. Era a única impressão de
vida no ambiente.
Como se
tivessem ouvido um sinal, Luís, Shantelle e Patrício deram um passo. E a esse
passo seguiram-se outros. Não havia pressa, apenas dignidade e determinação.
O som
daqueles passos ecoaram pelo salão como uma ameaça. Luís e Patrício estavam
mergulhando em um futuro desconhecido. Arriscavam tudo com aquela atitude. Eles
poderiam ser deserdados naquela tentativa de conquistarem a liberdade.
A mãe os
encarava com hostilidade. Eram seus próprios filhos e ousaram se rebelar contra
sua vontade.
Shantelle
sentiu o coração bater mais forte.
O que faria
aquela mulher? Tentaria detê-los? Teria pressentido que eles estavam convictos
de seus passos? Que aquele era um caminho sem volta?
Estavam
próximos ao palco quando Shantelle percebeu um brilho de reconhecimento no
olhar de Elvira.
Por fim,
Shantelle pensou.
A mulher
olhou para o lado. Shantelle acompanhou esse movimento. Ali, do lado direito do
palco, estava Cláudia Gallardo cercada por seus familiares. Ela estava toda de branco,
como uma noiva virgem. Quem a visse não poderia imaginar que sua mente
calculista fora capaz de sacrificar sua integridade em nome de um casamento de
conveniência.
Ciente da curiosidade que assaltara
todos os convidados, Elvira tentou atrair a atenção novamente sobre ela.
— Bem, isso é o que chamo de uma
grande surpresa. Parece que nem sequer uma revolução pôde impedir que Luís se
reunisse a nós esta noite. Por favor, peço que me dispensem por um minuto para
que eu possa dar as boas-vindas a meu filho, em particular.
Com um gesto, Elvira convocou os
músicos para que continuassem a tocar. Depois de se livrar do microfone, encaminhou-se
para o lado esquerdo do palco. Por certo queria trocar algumas palavras com
Luís longe dos ouvidos da família Gallardo.
Mas Luís não obedeceu sua ordem muda
e se encaminhou para o lado direito. Patrício não hesitou. Shantelle pensou que
ambos estavam dispostos a marchar até as linhas inimigas para defenderem sua
liberdade.
Os membros da família Gallardo
estavam ansiosos. Shantelle cogitou se eles estariam a par das manobras de
Elvira e de Cláudia. Ela apostaria que sim. Havia muito dinheiro em jogo.
Que tal, Cláudia, ter de encarar a
mulher que julgou ter destruído? Estar diante da mulher a quem mentiu? É bom
ver sonhos serem transformados em pó?
As respostas não tardaram.
Primeiro, a moça manifestou
surpresa. Depois, raiva.
— Vejo que você resolveu voltar para
sua estrangeira loura — ela esbravejou.
Shantelle mordeu o lábio para não
retrucar. Aquela briga era de Luís. Bastava estar ao lado dele.
— Sim e aconselho-a a explicar a sua
família o porquê deste meu comportamento.
— Explique você — exigiu o homem que
estava ao lado de Cláudia. — Você nos humilhou publicamente. Jamais o perdoarei
por isso.
— Esteban, sua filha e minha mãe se
uniram para destruir o que tive de mais precioso em minha vida. Não me fale em
perdão.
Shantelle
sentiu os olhos marejarem ao ouvir Luís se referir a ela como o bem mais
precioso que tivera em sua vida. Seu arrependimento foi maior do que nunca.
— De que você está falando? — O pai
de Cláudia indagou. — Patrício, você pode me explicar?
— Meu irmão está certo — Patrício
afirmou. — A verdade precisa ser contada.
— Nós tínhamos um acordo! — Esteban
protestou.
— Feito sobre traição e mentiras! —
Luís acusou.
— Pode provar o que diz?
— Por que não pergunta a sua filha?
Isso, é claro, se você já não foi colocado a par da trama que ela urdiu com
minha mãe para unir nossas famílias.
Esteban
Gallardo ficou rubro de cólera.
— A que você está se referindo?
— Pergunte a sua filha, Esteban.
Luís curvou a cabeça em sinal de
respeito e se afastou para o outro lado do palco, uma vez que a mãe se recusara
a participar da desagradável cena.
Cláudia tentou insultar Shantelle,
mas o próprio pai fez com que se calasse e não o envergonhasse ainda mais.
Luís Angel Martinez era um homem
honesto e valente, Shantelle pensou, orgulhosa. Fora uma tola em não lhe ter
dado a chance de provar quem era dois anos antes.
Forçou-se a engolir as lágrimas.
Errara muito. Assim mesmo, Luís ainda a queria a seu lado. Estaria lhe dando
forças agora para reagir contra o domínio da mãe?
As pessoas estavam olhando. Elvira,
porém, estava se portando com naturalidade, como se nada tivesse acontecido do
outro lado do palco.
— Ela é irmã de um velho amigo de
Luís — Shantelle imaginou-a dizendo aos convidados que se encontravam ao seu
redor. — Devem ter se encontrado por acaso em La Paz. Ela e o irmão são donos
de uma agência de turismo.
Mas quando percebeu que o trio
estava se aproximando dela, Elvira se desculpou. Não admitiria que a conversa
que pretendia ter com os filhos fosse ouvida por outros.
Shantelle se
preparou para a batalha. Elvira certamente desferiria seu ataque em quem
considerava o ponto vulnerável. Era de vital importância não demonstrar
fraqueza. Luís contava com ela para apoiá-lo. Precisava portar-se de forma a
provar ao júri que merecia estar sendo escoltada pelos dois irmãos Martinez.
— Por que não me procurou antes,
Luís? — a mãe perguntou, zangada.
— Você não me procurou há dois anos.
— Foi para seu próprio bem. Se
tivesse bom senso, reconheceria isso.
— E para meu próprio bem, você quis
me unir a uma mentirosa fria e calculista! Ora, por favor!
— Não permitirei que jogue fora tudo
pelo que trabalhei durante minha vida.
— Suas necessidades não são as
mesmas que as minhas. Aceite-me por quem sou ou acabará sozinha.
Elvira Rosa
Martinez não admitiu o desafio. Virou-se imediatamente para o filho caçula.
— Patrício...
— Não — ele respondeu, decidido. —
Não aceitarei a carga que colocou sobre os ombros de Luís. Estou satisfeito em
ser como sou.
Chocada, a mulher dirigiu-se a
Shantelle.
— Como podem estar se voltando
contra mim por causa dessa jovem insignificante?
— E você, mamãe — Luís retrucou —,
como pôde me fazer seu prisioneiro?
— Como se atreve a falar assim
comigo?
— Como você se atreveu a me negar
meu direito à felicidade?
Elvira
ergueu a cabeça de um modo arrogante.
— Ela nem sequer é argentina.
— A nacionalidade não importa,
mamãe. Ela é a mulher que amo.
Shantelle
parou de respirar. Teria ouvido bem? Luís a amava?
— Alguma vez amou alguém, mamãe? —
Luís continuou.
— Pare com isso! — ela ordenou,
pálida. — Se eu não os amasse, não tentaria protegê-los.
— Não precisamos dessa forma de
proteção, mas de respeito.
— Eduardo não teria feito isso comigo.
— Eduardo se foi, mamãe. Mas você
ainda tem a mim e Patrício. E nós queremos viver nossas próprias vidas de agora
em diante. Com ou sem sua aprovação. O que será, mamãe?
— Eu...
— Um momento. — Luís se dirigiu a
Shantelle. — Agora é sua vez.
Shantelle pestanejou. Patrício
segurou a mãe pelo braço.
— Vamos ouvir o que Shantelle tem a
dizer, está bem?
Ela não ouviu a resposta de Elvira.
Estava atônita. O que Luís ainda pretendia fazer?
Ele a segurou pela mão e começou a
andar em direção ao centro do palco.
— Você ficou satisfeita? Acha que eu
disse tudo que devia?
As palavras de Luís não faziam
sentido para ela. Fez um sinal afirmativo com a cabeça.
— Acho que sim.
— Não — ele protestou. — Eu a
maltratei ontem à noite. Estou lhe dando a chance agora de fazer comigo o que
acha que mereço.
Luís estava assustando-a.
— Não estou entendendo.
— Então aceite o presente que quero
lhe dar.
— Que presente?
— Você verá daqui a pouco.
Luís fez um sinal para que a
orquestra parasse a música. As conversas e risos cessaram. A família Gallardo
não havia se retirado. Elvira Rosa continuava junto ao palco com o filho
Patrício.
De repente, o silêncio foi tão
grande que seria possível ouvir um alfinete cair.
Luís apertou a mão de Shantelle. Ela
ergueu os olhos para ele. Como se esperasse por esse sinal, Luís sorriu. Em
seguida, dirigiu-se aos convidados:
— Senhoras e senhores...
CAPÍTULO XVI
Shantelle
olhou para a elite da sociedade argentina. As senhoras e senhores aos quais
Luís se dirigia eram pessoas importantes para o andamento dos negócios da
família Martinez e para ele próprio.
Luís
respirou fundo antes de continuar e saciar a ávida curiosidade de todos os
presentes. Uma forte tensão assaltou-a. Não queria ouvir mais nenhuma
referência ao que acontecera na noite anterior. Não queria nenhuma declaração
pública que só serviria para humilhar a ambos. Detestaria se Luís insistisse
nisso.
A voz grave
e profunda ecoou pelo salão.
— Tenho muito orgulho em lhes
apresentar uma mulher que é um exemplo de bondade e de coragem, srta. Shantelle
Wright.
Shantelle
sentiu que corava diante do interesse que Luís estava despertando nos presentes
por sua pessoa.
— O irmão de Shantelle, Alan, é um
velho amigo meu — Luís prosseguiu. — Ele trabalhou comigo em nossa empresa de
mineração no Brasil e mais tarde tornou-se um bem-sucedido homem de negócios
com sua agência de turismo especializada em excursões à América do Sul, tendo
Buenos Aires como o ponto principal de embarque e desembarque. O que,
incidentalmente, é muito bom para nosso país à medida que aumenta nossa
captação de dólares.
Um murmúrio
de aprovação se espalhou pelo salão. Shantelle respirou, aliviada. Era
evidente que Luís sentia necessidade de explicar a razão de sua presença na
festa.
— Na noite passada, Shantelle teve a
idéia de tentar conseguir um ônibus para retirar seu grupo de turistas de La
Paz, pois muitos estavam ressentindo a altitude da cidade.
As pessoas continuavam interessadas
no relato, mas Shantelle estava trêmula. Quantos outros detalhes Luís pretendia
fornecer a seu respeito?
— Hoje — ele fez uma pausa para
aguçar ainda mais a curiosidade geral —, esta linda senhorita salvou-me ao me
livrar da mira de um tanque. Devo minha gratidão a seus espetaculares cabelos
loiros.
O comentário bem-humorado provocou
risadas. O sorriso de Luís acentuou.
— Eu retribuí esse favor, fazendo
com que o ônibus saltasse sobre uma trincheira aberta por camponeses. O clima
de revolta é geral na Bolívia, podemos dizer, mas nós conseguimos escapar.
Dessa vez, a informação foi recebida
com uma salva de palmas e Shantelle viu-se sorrindo também. Luís era incrível.
Ele havia conseguido transformar um pesadelo em uma história capaz de divertir
os ouvintes. Ao mesmo tempo, estava tornando a parceria entre eles algo
perfeitamente aceitável.
As palmas cessaram, mas as pessoas
continuavam imóveis, prontas para ouvirem o restante do caso.
— Tenho o prazer de dizer que a
longa viagem que nos trouxe até aqui esta noite envolveu mais do que sobrevivência.
Há dois anos, devido a problemas de natureza pessoal, Shantelle decidiu,
contra minha vontade, que não havia possibilidade de nós dois vivermos juntos.
Shantelle quase entrou em pânico.
Oh, não. Ele não podia fazer isso. Não podia expor a mãe e Cláudia.
— Hoje, quando nossas vidas estavam
em perigo — Luís continuou —, descobrimos que aquelas circunstâncias não tinham
mais nenhum significado.
Como Luís podia estar dizendo
aquilo? Se estavam naquela festa era para fazer justiça em decorrência
daquelas circunstâncias!
Agitada, Shantelle tentou fazê-lo
calar com um sinal. Ele respondeu, apertando-lhe a mão com mais força.
— Portanto, é diante de todos vocês
que quero declarar meu amor por Shantelle. Ela é a mulher com quero passar o
resto de minha vida.
Shantelle estava confusa. As
lágrimas não a deixavam ver nada com clareza. Nem sequer Luís. Não entendia
aonde ele queria chegar com aquele anúncio.
— Shantelle, você quer ser minha
esposa?
A compreensão atingiu-a como um
raio. Seria casamento ou nada.
Luís estava se sentindo endividado
com ela. Aquilo parecia uma forma de ficarem quites pela omissão do passado e
pela noite anterior quando ele a maltratara.
Mas Luís a valorizara diante das
pessoas mais influentes da Argentina e estava lhe oferecendo seu nome.
Para se expor como Luís estava fazendo,
para arriscar tudo como ela fizera na noite anterior, embora de um modo
diferente, ele precisava estar sendo movido pelo amor.
Não soube o que pensar.
Luís estava esperando sua resposta.
Todos a aguardavam. Ela tentou falar, mas não conseguiu. Mas era importante
vencer o pânico. Seria incapaz de humilhar Luís diante daquela gente.
Precisava falar.
Umedeceu os lábios com a ponta da
língua. Respirou fundo. Finalmente disse o que tinha de dizer.
— Sim, Luís, eu quero ser sua
esposa.
As palavras vibraram pelo microfone.
Houve um instante de perplexo silêncio. Então, alguém começou a aplaudir.
O som parecia vir do lado do palco
onde estavam Elvira Rosa Martinez e seu filho, Patrício. Impossível saber.
A ação provocou reação. O gesto foi
imitado por outros. E mais outros. De repente, parecia que todos os presentes
estavam aplaudindo.
Luís soltou a mão de Shantelle e
abraçou-a. Shantelle esforçou-se para não soluçar. Sua vontade era rir e chorar
ao mesmo tempo. O que nunca acreditara ser possível, estava acontecendo. Ela
havia sido aprovada como noiva de Luís e como sua futura esposa.
— Gracias. Muchas gracias.
Talvez fosse a distorção causada
pelo microfone, mas a voz de Luís soou comovida. Ambos estavam emocionados com
a franca aceitação dos presentes. O que os teria levado realmente a isso? O
fato de Luís ser um personagem popular em Buenos Aires? Ou fora sua sinceridade
ao narrar um caso de amor antigo e complicado que renascera diante de uma
situação de perigo?
Era um romance...
Uma história de fadas...
Cinderela
fora escolhida pelo príncipe.
Os pensamentos eram tantos e tão
desencontrados que Shantelle sentiu uma leve tontura. Se Luís não a estivesse
abraçando, talvez não tivesse resistido.
Ele prosseguiu.
— Quando paramos em Villa Tunari
esta tarde, fiz uma ligação para Santa Cruz. Como vocês devem saber, a Bolívia
produz as mais lindas esmeraldas do mundo e eu aproveitei a oportunidade para
comprar um anel para Shantelle. De esmeralda, é claro, para combinar com seus
olhos.
Shantelle mal podia acreditar.
Durante toda a viagem, Luís estivera fazendo planos para levá-la à recepção em
sua casa e para lhe propor casamento! A pasta não continha papéis, mas jóias!
— Entregaram-me uma esplêndida
seleção de anéis no aeroporto. Eu aproveitei e escolhi um quando Shantelle
adormeceu durante o vôo para Buenos Aires. — Ele fez uma pausa e olhou para
ela. — Por favor, Shantelle, aceite este símbolo de meu amor, de minha devoção
e de minha confiança em nosso futuro.
Incapaz de reagir ao torpor que a
invadira, Shantelle observou Luís tirar um pequeno estojo do bolso do paletó e
colocar em seu dedo o anel mais lindo que já vira. Havia uma esmeralda no
centro, rodeada por vários diamantes em formato de baguetes.
Luís tornou a falar ao microfone.
— Senhoras e senhores, acho que ela
não esperava por isto.
A felicidade de Luís era
contagiante. Muitas pessoas riram. Quanto a Shantelle, dizer que ela não
esperava por aquilo era pouco. Estava atônita.
— Como os senhores ainda não
conhecem minha futura esposa, quero informar que ela fala nosso idioma
fluentemente, que sabe mais do que nós sobre nosso país e que sabe dançar tango
com muita graça. Aliás, estou com vontade de dar uma pequena demonstração do
que a ensinei a fazer agora mesmo.
A orquestra foi solicitada a se
preparar para brindá-los com mais um número.
— Estão todos convidados — disse
Luís — a se reunirem a nós na pista de dança em comemoração a esta noite
inesquecível.
Ao ver Luís soltar o microfone, o
responsável pela declaração se tornar tão pública, Shantelle cogitou se aquela
atitude não fora uma espécie de chantagem. No fundo, ela havia sido usada mais
uma vez. Ele a pressionara a aceitá-lo. Afinal, ele queria realmente aquele
noivado? Ou fora a maneira que encontrara para fazer justiça?
Luís olhou para ela. Seus olhos
estavam brilhantes. Ele vibrava de prazer ao segurar sua mão. Levou-a aos
lábios e beijou-a como um cavalheiro. Depois a conduziu, segurando-a pela
cintura, à pista de dança.
Os convidados continuavam atentos a
eles. Talvez quisessem comprovar se ela sabia dançar o tango, como Luís
afirmara.
Luís posicionou-se. Exalava
autoconfiança. Shantelle mal podia respirar de tão acelerado que seu coração
estava, mas seu orgulho conseguiu convencê-la a acompanhá-lo nos passos da
dança.
Mas foi o abraço de Luís seu maior
incentivo. Seus braços lhe deram toda a segurança de que precisava.
A orquestra tocou uma canção da
década de cinqüenta. A escolha não poderia ter sido melhor. Os acordes eram
vibrantes e dramáticos.
— Lembre-se de que este vestido não
favorece movimentos bruscos — Shantelle murmurou.
Ele lhe deu o sorriso mais sexy que
já vira.
— Meu controle será irrepreensível.
A afirmação provocou em Shantelle a
vontade de desafiá-lo. Luís Angel Martinez deveria se preparar para exercer um
controle ainda maior sobre seu corpo!
— Pronta? — ele perguntou,
malicioso.
— Eu estou. Espero que você também
esteja.
Luís deu os primeiros passos ao
estilo tradicional. Shantelle seguiu-o, obediente. Quando ele executou um novo
movimento, mais difícil e que exigia uma certa perícia, ela aproveitou para
lançar seu desafio.
O desejo explodiu nos olhos de Luís.
Ele abraçou-a e se inclinou sobre ela, obrigando-a a arquear as costas.
— Tenha calma — Shantelle provocou
com um sussurro.
— Quero tudo a que tenho direito —
Luís respondeu. Uma onda de excitação invadiu-a. Luís a queria! E ela não
fingiria o contrário. Ele lhe devia muitas respostas, mas se aquela noite fosse
uma amostra da vida que teriam no futuro, não a desperdiçaria por nada no
mundo.
Entregaram-se ao ritmo da música e
ao calor que os unia. Os movimentos eram tão apaixonados que Shantelle teve
medo de Luís não resistir e lhe fazer amor diante de todos.
Estavam arfantes quando a música
terminou. Seus seios estavam comprimidos contra o peito dele, suas pernas estavam
entrelaçadas.
Aquilo era apenas o começo, Luís
estava lhe dizendo com os olhos. Mais tarde, eles se entregariam a uma outra espécie
de dança ainda mais sensual!
CAPÍTULO XVII
Teria feito
o bastante? A pergunta assaltou Luís enquanto ele observava Shantelle dançando
uma valsa com Patrício. Não um tango. Ele jamais permitiria que outro homem a
convidasse para dançar um tango.
Mal podia
esperar para ter Shantelle em seus braços, só para ele.
Admitia,
porém, que o convite de seu irmão não poderia ter sido mais apropriado.
Significara o apoio de sua família, o reforço de sua aprovação.
Seu plano
havia funcionado. Por enquanto. Shantelle havia cumprido sua promessa de
permanecer ao lado dele, mas a verdade era que ele não sabia o que ela estava
pensando de tudo aquilo.
Suas
palavras e atitudes a teriam compensado pelo que a fizera sofrer? Pelo modo
desprezível que a tratara em La Paz? Teria sido suficiente?
Procurara
fazer o melhor possível, Luís pensou. Não poderia mais viver sem Shantelle.
Precisava
saber o que a impulsionara a aceitar seu pedido de casamento. Sua honra? Teria
apenas cumprido sua palavra de cooperar com ele a fim de salvá-lo de uma
humilhação em público? Ou seu amor por ele? Teria lhe dado uma chance de provar
que estava arrependido e que ainda a amava e a queria a seu lado?
Luís
esperava que fosse pelo segundo motivo. Isso lhe daria esperança.
A valsa estava terminando. Ele
consultou seu relógio de pulso. Quase três horas. Já poderiam ir embora.
— Está impaciente, Luís? — caçoou um
de seus amigos.
— Ninguém pode culpá-lo por isso —
disse outro. — Uma mulher como sua noiva vira a cabeça de qualquer homem. Ela é
linda, Luís.
— Sim, ela é muito linda — Luís
concordou com um imenso sorriso.
Ele fez um gesto para um dos
empregados e pediu que desse um recado para seu motorista para que o esperasse
à porta da frente.
A maioria dos convidados deveria
permanecer até o raiar do dia, Luís pensou. Não aconteceria o mesmo com ele ou
com Shantelle. O dia havia sido longo e eles mereciam uma certa benevolência.
Ninguém repararia, certamente, se eles se despedissem.
A família Gallardo havia feito uma
retirada estratégica uma hora antes. Muito educado e inteligente, Esteban se
despedira só depois de ter garantido que a amizade entre as famílias permaneceria
inabalada. Problemas, quando surgiam, deviam ser discutidos em salas de
reuniões, não em ocasiões festivas. Conservar amizades era quase tão importante
quanto cultivar sociedades comerciais lucrativas.
Shantelle estava feliz. Não havia
mais razão para sentir medo. Os amigos e conhecidos influentes de Luís a aceitaram.
Mais do que isso, eles a cobriram de atenções e de cumprimentos.
Luís suspirou, aliviado. O resultado
não poderia ter sido melhor. Fazer uma proposta de casamento em público fora a
idéia mais brilhante de sua vida. Agora, talvez, Shantelle tivesse mais
facilidade em acreditar em sua sinceridade.
Assim mesmo, ela custara a
responder. Enquanto não conversassem a sós e ela confirmasse sua decisão de se
casar com ele, não ficaria tranqüilo. Shantelle lhe prometeu apoio e não faltou
com sua palavra. Quando dançaram juntos o tango, porém, houve mais do que apoio
em seu comportamento. Ninguém se entregaria ao ritmo com tanto ardor e
sensualidade se não houvesse desejo pelo parceiro.
A menos, é claro, que estivesse tão
zangada a ponto de fingir.
Não podia acreditar nessa hipótese.
Shantelle não demonstrara raiva em nenhuma de suas atitudes. Ao contrário.
Ela foi graciosa e delicada em todas as apresentações, sorrindo para os
convidados e incentivando-o para que não esmorecesse em sua decisão.
Admitia que havia a possibilidade de
Shantelle ter representado por uma necessidade íntima de provar que era uma
companheira à altura de sua posição social, visse ou não uma chance de futuro
para eles.
A valsa terminou.
Ele se desculpou e foi ao encontro
de Shantelle e de Patrício. Não queria que nenhum outro homem a tirasse para
dançar. Ela era a mulher mais bonita da festa. Magnífica seria a descrição
apropriada, ele pensou ao vê-la caminhando em sua direção com aquele vestido
vermelho e prateado que realçava sua gloriosa feminilidade, seus cabelos que
brilhavam como o sol, seu rosto que falava de uma personalidade vibrante.
Ela tem de ser minha...
O pensamento escapou de sua mente e
se espalhou como fogo pelo corpo. Ele estendeu a mão e ela aceitou-a sem
hesitar.
— Estamos de saída — Luís avisou
Patrício. Não poderia ficar na festa nem sequer por mais um minuto. — Obrigado
por seu apoio, Patrício.
O irmão fez um movimento com a
cabeça.
— Da próxima vez, dê-me algum tempo
para preparar uma estratégia melhor. — Ele piscou. — Devo admitir, porém, que
seu estilo foi impecável. — Em seguida, Patrício segurou a mão de Shantelle e
levou-a aos lábios em um gesto de galanteria. — Desculpe se não fui um bom parceiro
na pista de dança. Seja bem-vinda à família. É um orgulho tê-la como noiva de
meu irmão.
— Você é muito amável — Shantelle
respondeu. Quando trocaram um abraço de despedida, Patrício falou ao ouvido de
Luís.
— Não vá embora sem falar com nossa
mãe. Foi ela quem incentivou os aplausos no instante que Shantelle aceitou seu
pedido de casamento.
A informação surpreendeu Luís.
— Pensei que tivesse sido você.
— Eu a imitei, mas os aplausos não
partiram de mim.
— Ela fez isso apenas para salvar as
aparências.
— Pode ser que sim. Mas também pode
significar mais do que você imagina.
— É o que veremos — Luís respondeu.
— Boa noite, Patrício.
— Buenas noches.
Luís acenou para os amigos à medida
que se dirigia à saída. Apesar da recomendação do irmão, não pretendia procurar
a mãe. Por que arriscar? Não queria que ela arruinasse uma noite que poderia
chamar de perfeita até aquele instante.
— Bem, agora podemos ser nós mesmos
outra vez — Shantelle disse com um suspiro assim que se viu a sós com Luís na
galeria.
Ele franziu o rosto. O que
significaria aquela observação?
— Espero que a justiça tenha sido
feita — Luís murmurou.
— Você soube ser convincente. Chamou
a atenção de todos, com certeza, quando tirou o anel do bolso.
— Você gostou? Acertei ao lhe
comprar uma esmeralda?
Havia um sorriso indefinível nos
lábios de Shantelle ao erguer a mão à altura dos olhos e admirar o anel.
— Foi um gesto extravagante. Serviu
ao menos para convencer o público de suas pretensões.
Ela não acreditou em mim, Luís
pensou.
Não esperava por isso. As palavras
de Shantelle abalaram sua autoconfiança. O que mais poderia dizer ou fazer para
convencê-la de sua sinceridade? Seu plano teria sido inútil?
A ansiedade o dominou. Desejava
Shantelle. Demais. Não suportaria se ela o deixasse. Faltavam poucas horas para
seu vôo de volta para a Austrália. Ele havia se deixado embalar pela esperança
de que Shantelle fosse resolver ficar. Contou-as. Duas. Não havia um minuto a
perder.
— Eu o comprei como um símbolo real,
Shantelle. Não foi um gesto vazio. Imaginei que ele seria uma prova de meus
sentimentos e que significaria mais do que palavras.
Luís sentiu as mãos de Shantelle
contraírem. Ela baixou a cabeça. Ele ficou desesperado. Shantelle estava se
distanciando. Estava se fechando e ele precisava trazê-la de volta.
Elvira Rosa
interceptou-lhes o caminho. Luís encarou-a com raiva. Se ela não tivesse se
intrometido entre eles dois anos antes, Shantelle poderia ser sua esposa.
— Luís, Shantelle, vocês estão indo
embora?
— Sim. Não pretende nos impedir, não
é? — Luís esbravejou.
A mãe parecia tensa, abatida, mas
Luís não se deixou comover. Os danos que ela causara eram sérios demais para
serem esquecidos.
Ela tocou-o no braço, algo que não
era de seu feitio. Mas nem sequer essa tentativa de aproximação o comoveu. Ela
era a culpada pelo inferno em que ele vivera naqueles dois anos. E se Shantelle
não o quisesse...
— Sinto muito. Eu estava errada —
ela reconheceu. Nem sequer o gesto de humildade fez Luís rever sua posição. Ela
se voltou para Shantelle em seguida. — Por favor, não afaste meu filho de mim.
Luís quis gritar. Sua mãe era capaz
de tudo para prendê-lo a seu lado.
— Eu jamais faria isso, señora Martinez. Nem antes, nem agora.
A respiração lhe faltou. Isso
significava que Shantelle iria embora para sempre. Que ele a perdera
definitivamente.
— Estou envergonhada...
Aquela admissão o fez encarar a mãe.
Seria uma expressão de genuíno arrependimento ou apenas mais uma de suas
tramas? Ela parecia ter envelhecido de repente. Parecia cansada. Por mais que
tentasse, Luís não conseguiu detectar a costumeira arrogância em suas atitudes.
— Espero que você consiga me perdoar
um dia — ela disse, por fim.
— Patrício nos contou que as palmas
partiram da senhora — Shantelle murmurou.
— Sim. Era o mínimo que eu poderia
fazer. Juro que nunca pensei que Luís a amasse tanto. — A mãe olhou, súplice,
para o filho. — Por favor, acredite em mim quando digo que desejo a vocês
muitas felicidades.
Embora contra sua vontade, Luís
ficou emocionado com o gesto da mãe. Talvez ainda houvesse esperança para eles
de viverem unidos como uma família, sem que ela quisesse manipulá-lo.
— Obrigada — Shantelle agradeceu.
Luís hesitou. O que significava
aquele agradecimento? Que Shantelle ficaria a seu lado? Ou aquilo era uma
simples resposta de cortesia?
Luís apertou o braço de Shantelle.
— Falaremos em outra oportunidade, madre. Precisamos ir agora.
Elvira Rosa
fez um movimento com a cabeça e se afastou para o lado para que eles passassem.
— Promova as pazes entre ela e
Patrício, Luís — Shantelle pediu.
Luís sentiu o coração bater mais
forte. Estava hesitante.
— Por favor — ela repetiu. — Quero
partir tranqüila.
Luís fez menção de voltar para o
salão. Mas não foi preciso. Patrício estava olhando para eles, de longe.
Trocaram um sorriso que disse tudo.
— Você é incrível, Shantelle — Luís
disse, comovido, quando ficaram a sós.
— Ela é sua mãe.
— E você? É minha noiva?
Shantelle baixou a cabeça e
suspirou. Luís não se atreveu a respirar.
— Vamos embora, por favor.
Aquilo não era um não!
— Já mandei chamar o motorista. Ele
deve estar nos aguardando na porta.
— Quanta eficiência!
Ela estava brincando com ele! Luís
quase pulou de alegria.
CAPÍTULO XVIII
No interior
do carro, Luís quase não resistiu ao desejo de abraçar Shantelle e de cobri-la
de beijos apaixonados para afastar de vez qualquer dúvida que ela ainda pudesse
ter sobre seus sentimentos. Mas sabia que não seria uma boa idéia. Não no
carro, diante do motorista. Em poucos minutos estariam em seu apartamento.
Então ele poderia tomá-la nos braços, sentá-la em seu colo e não precisariam se
preocupar com nada nem com ninguém. A menos que Shantelle...
Olhou para
ela e tentou adivinhar se estava sentindo o mesmo que ele. Parecia distraída,
olhando para a casa. Quando o motorista passou pelos portões, ela se virou para
trás.
Receoso de
que Shantelle estivesse pensando novamente na barreira que o nome Martinez
poderia significar entre eles, Luís procurou-lhe a mão e apertou-a.
Ela fitou-o,
mas parecia tão distante que Luís sentiu o receio aumentar.
— Nunca tivemos nenhuma tragédia em
minha família — disse inesperadamente. — Eu não havia entendido. Foi difícil
para todos, mas esta noite serviu acima de tudo para esclarecer o problema.
Provou o quanto todos se enganam com as aparências.
— De que problema você está falando?
— Luís quis saber.
— Da rejeição de sua mãe por mim. Eu
a atribuí a sua arrogância. Mas o motivo era muito mais sério.
— Envolvia poder — Luís explicou.
— Sim. E a esse respeito, acredita
que haverá retaliação por parte da família Gallardo?
— Não, não creio. Mesmo que tentem,
nosso império não é vulnerável a ataques. Talvez alguns acordos sejam desfeitos
e acarretem prejuízos. Mas, de modo geral, não correremos nenhum risco de
falência.
Satisfeita com o que ouviu,
Shantelle olhou para as mãos que repousavam em seu colo. A esmeralda e os
diamantes brilhavam, maravilhosos.
Luís ficou novamente inquieto. O que
ela estaria pensando? Em devolver o anel, talvez?
— Eu pensei... ontem à noite, que
havia acabado tudo entre nós — Shantelle disse com um fio de voz.
Luís pestanejou. Se pudesse, faria o
relógio voltar no tempo para consertar o pior erro que cometera em sua vida.
Fora movido pela amargura e pela frustração. Recusara-se a ouvi-la. Se
Shantelle não o quisesse mais, não a culparia.
O impulso de tomá-la nos braços
tornou-se quase irresistível. Palavras não adiantariam. Ele precisava mostrar
a ela, fazer com que sentisse todo seu amor.
— Olhe para mim, por favor.
Ela atendeu.
— Eu detestei você ontem à noite,
Shantelle. Detestei-a por ter me deixado durante dois longos anos. Continuo
querendo-a como antes. Mais ainda, se possível. Faria qualquer coisa para tê-la
de volta.
O carro parou.
Luís não pôde esperar nem sequer
mais um segundo. Saltou do carro e abriu-lhe a porta antes que o motorista
tivesse tempo de estender a mão para o trinco. E em vez de ajudá-la a descer,
pegou-a no colo.
— Não diga não! — suplicou.
Estavam chegando à porta do
apartamento quando Luís sentiu o hálito morno de Shantelle em sua orelha.
— Hoje eu poderei tocá-lo?
Ele mal podia acreditar em tamanha
felicidade. Estava tão afobado para entrar no apartamento que não conseguia encontrar
a chave no bolso. Shantelle começou a rir. Ele não imitou-a. Estava sem fôlego.
Por fim, encontrou a chave e
introduziu-a na fechadura. Faltava pouco!
— Agora solte-me, Luís.
— Já irei soltá-la — ele prometeu a
caminho do quarto.
— Não quero que me coloque na cama —
ela protestou.
— Não?
— Coloque-me no chão.
Não era o que ele queria, mas não
ousou desobedecer.
— Não quero que estrague meu
vestido.
— Eu lhe compro outro.
— Este tem um valor sentimental. Por
favor, acenda a luz.
Luís estava aturdido. Mal conseguia
raciocinar. Acendeu a luz e viu-a sorrindo para ele.
— É minha vez de despi-lo.
A tensão se dissipou. Ele estava explodindo
de felicidade. Estava tudo bem. Como sempre deveria ter sido entre eles.
— Que tal fazermos isso juntos? —
propôs. — Uma peça de cada um. Minha gravata, seu colar, meu paletó, seu vestido.
Será mais rápido e mais interessante.
Havia um brilho malicioso nos olhos
verdes de Shantelle.
— Não quero que seja rápido. Quero
saborear cada segundo.
Faltava apenas o principal. Ele
queria ouvir uma declaração.
— Você ainda me ama, não? — Foi mais
uma afirmação do que uma pergunta. Não havia dúvidas. O modo que Shantelle o
tocava e fitava já era uma declaração de amor.
— Parece que terei de viver com você
na alegria e na tristeza — ela estava respondendo, mas Luís a interrompeu.
— Quero ouvir as palavras.
Ela terminou de tirar a gravata e
enlaçou-o pelo pescoço.
— Eu te amo, Luís Angel Martinez.
Nunca houve outro homem para mim. E nunca haverá.
Beijaram-se. Não uma, mas uma
infinidade de vezes, ansiosos por afastar todas as sombras que nunca deveriam
ter tentado apagar aquele amor.
Ele era lindo, fascinante. Sentir
Luís em seu corpo inebriava-a. Estavam juntos, amando-se, como ela sonhara
fazer na noite anterior. Dando e recebendo. A excitação era mútua. Não se
resumiu às sensações físicas. O prazer e o êxtase alcançavam o coração, a mente
e a alma.
Foi incrivelmente especial. As
necessidades e os desejos, as esperanças e os sonhos que haviam ficado
guardados durante dois anos foram liberados com tanta intensidade que eles se
sentiram no paraíso.
O momento final, quando Luís a
penetrou, foi mágico. Ela o abraçou com as pernas para acompanhá-lo nos
movimentos que celebrariam a vida em conjunto que teriam no futuro. Estavam
livres agora para se entregarem um ao outro. Para sempre.
Não foi possível continuar pensando.
Apenas sentir. Ondas se preparavam para cobri-los em um sublime clímax.
— Obrigado — Luís murmurou com a voz
embargada de emoção. — Obrigado por voltar para mim e me amar.
— Nós sempre pertencemos um ao outro
— Shantelle respondeu. — Eu não me senti viva por inteiro em nenhum momento
nesses dois últimos anos.
— Também não consegui viver sem você
— ele confessou. — Nunca mais nos separaremos. Se quiser continuar morando na
Austrália, eu...
— Claro que não, Luís! Sua vida é
aqui. Eu serei feliz aqui com você. — Além disso, ela havia prometido a Elvira Rosa
Martinez que não lhe roubaria o filho. Ela já havia sofrido muito com a perda
de Eduardo.
— E sua família?
Shantelle hesitou. Preferiria que
eles morassem mais perto, mas sabia que não seria possível. Por outro lado, de
avião, a distância era de um dia.
— Nós a visitaremos sempre que for
possível, não?
— Sempre que você quiser, meu amor.
Aliás, eu preciso fazer isso o quanto antes. Estou ansioso por conhecer seus
pais e pedi-la formalmente em casamento.
Ela sorriu.
— Quando será isso?
— Bem, como dei minha palavra de que
a colocaria no avião pela manhã, estou fazendo planos para segui-la em uma
semana. Você terá tempo para prepará-los e eu para garantir que você será bem
acolhida quando voltar comigo.
— Então, você irá me buscar, não é?
Um sorriso iluminou o rosto de Luís.
— Posso ficar sem você por uma
semana. Não mais. Um beijo os calou. E outros se seguiram. Quase não havia mais
tempo. Precisavam aproveitar cada minuto.
Encontraram-se com Alan e os
excursionistas no aeroporto na hora marcada. Alan não precisou perguntar para
saber que sua irmã e seu amigo haviam se acertado.
Compreensivo, não pediu que ela o
ajudasse. Deixou-a para que se despedisse de Luís. Eles haviam lhe contado
sobre o noivado e lhe mostrado o anel de esmeralda e diamantes. E ele
acreditava que o amor daqueles dois seria tão duradouro quanto aquelas pedras
preciosas.
— Boa viagem — Luís murmurou.
— Estarei esperando-o no aeroporto
de Sídnei daqui a uma semana — Shantelle prometeu.
— Ligarei todos os dias.
Ela fez um movimento afirmativo com
a cabeça. Precisava ir. Trocaram um último beijo e ela correu para junto dos
outros. Estava rindo. Em breve estaria voltando para a Argentina, para o amor
de sua vida.
CAPÍTULO XIX
— Eu os
declaro marido e mulher.
Até que
enfim, Luís pensou, eufórico. O compromisso estava selado. Esperara três meses
por esse dia. Contara cada minuto para ter certeza de que nada impediria que
Shantelle se tornasse realmente sua mulher. Agora podia respirar tranqüilo.
Shantelle e ele estavam unidos pelo matrimônio, sob os olhos da Lei e de Deus.
O futuro estava assegurado.
Ergueu
delicadamente o véu que cobria o rosto da noiva. Os lindos olhos verdes de
Shantelle estavam marejados, do mesmo modo que os vira no momento que a pedira
em casamento diante daquelas mesmas pessoas que lotavam a igreja. Eram
lágrimas de amor, de emoção e de felicidade.
— Pode beijar a noiva.
Ele
abraçou-a e beijou-a. Marido e mulher. Eram um só a partir daquele momento.
Estavam livres para viver a glória do amor pelo resto de seus dias.
— Eu te amo — ele sussurrou junto
aos lábios de Shantelle.
— Eu te amo, Luís.
— Agora você também é uma Martinez —
ele disse com um sorriso. — Está pronta para sua nova vida como minha esposa?
— Estou. Sempre estarei.
Aquelas
palavras o embalaram como se fosse uma doce canção de ninar. Shantelle estava a
seu lado, confiante. Sempre estaria. Ela o amava e lhe seria fiel. Assim como ele.
Ambos haviam aprendido a lição. O fator mais importante em uma relação era a
honestidade.
Aquele era o verdadeiro início de
suas vidas em comum.
Percorreram a igreja de braço dado,
seguidos por Alan e sua esposa, Vicky, e por Patrício e a jovem prima deles,
Maria.
A mãe estava de pé, elegante e
imponente, no primeiro banco. Ele ainda não havia conseguido perdoá-la de todo
por tê-lo afastado de Shantelle por dois anos. Mas sorriu e fitou-a, disposto a
esquecer o passado.
Ela retribuiu o sorriso. Queria a
felicidade do filho. Aprendera a reconhecer que havia um poder além de seu
alcance. Algo que o dinheiro e a influência não podia comprar.
O amor.
Luís esperava que a mãe nunca se
esquecesse dessa verdade. No momento, porém, aquilo era irrelevante. Ele e
Shantelle estavam casados. Irrevogavelmente. Se surgissem problemas, eles os
resolveriam. Se tivessem divergências de opiniões, conversariam a respeito.
Nada mais poderia separá-los.
Os pais de Shantelle estavam de pé
também. Eles haviam dado suas bênçãos ao casal sem reservas. Sabiam o quanto a
filha amava aquele homem. Esperavam apenas que ele retribuísse seus sentimentos.
A organista estava tocando uma linda
marcha. Luís apertou a mão de Shantelle com o braço. Estava orgulhoso e
exultante ao levá-la para a vida que criariam só para eles.
O futuro seria brilhante, Luís
pensou, enquanto olhava para Shantelle que distribuía sorrisos aos convidados.
Ela era fascinante. Encantava a todos. Como o encantara.
Com ela não haveria escuridão.
Ela era o sol, a lua e as estrelas.
Shantelle... sua esposa.
FIM
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